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A presença da eternidade nos sonhos


Edgard Leite Ferreira Neto


Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Jung (1875-1961), psicanalistas fundadores, realizaram muitas pesquisas sobre o mistério dos sonhos. Podemos mesmo dizer que era este um dos temas centrais de suas investigações. Embora próximos entre si, em diversas coisas, discordaram, no entanto, nas suas conclusões sobre o tema. Uma questão central, para ambos, era sobre o material do sonho: qual a sua natureza?


Sempre se entendeu que o sonho é uma espécie de justaposição de planos, um espaço onde se misturam duas dimensões: elementos do mundo visível com os de um outro, invisível. E o que acontece ali pode ser interpretado, portanto, como visões de um outro universo através das quais trazemos mensagens para este. É uma experiência vivenciada por uma consciência adormecida neste mundo, mas desperta, com olhos de uma natureza incompreensível, para uma realidade infinita, na qual inexistem as normas limitadas deste aqui.


Na Bíblia, o sonho é, portanto, um dos meios pelos quais Deus fala aos homens, como está dito em Jó: "antes Deus fala uma e duas vezes; porém ninguém atenta para isso. Em sonho ou em visão noturna, quando cai o sono profundo sobre os homens, e adormecem na cama, então o revela ao ouvido dos homens, e lhes sela a sua instrução, para apartar o homem daquilo que faz, e esconder do homem a soberba" (Jó 33:14-17).


Se o ser humano não atenta a Deus no mundo da vigília, Deus pode lhe falar e lhe dar conselhos através dos sonhos. Por isso é bom interpretá-los e muita literatura foi produzida sobre o seu simbolismo.


Mas Freud não concordava em nada com isso. Absolutamente desencantado e descrente, sustentava, à maneira de um Iluminismo radical, que tudo que havia na consciência vinha do mundo: “o material que compõe o conteúdo de um sonho é derivado, de algum modo, da experiência, ou seja, foi reproduzido ou lembrado no sonho – ao menos isso podemos considerar como fato indiscutível”(1). Os sonhos eram ecos, sombras, recriações de experiências do ser vivo no mundo, que tomavam a forma de símbolos oriundos de associações feitas entre coisas na realidade sensível.


Essa visão inviabiliza a ideia da conexão do sonho com algo existente além do mundo e ata a consciência quer à experiências da vida quer à dimensões pulsionais, orgânicas, do ser vivo.


Seu aluno Jung, no entanto, observando, da mesma forma que Freud, inumeráveis sonhos, pode perceber a recorrência de determinadas figuras e elementos simbólicos nos sonhos de diferentes pessoas, em diferentes culturas. Para ele, o sonho não podia ser considerado apenas um eco do mundo, embora também o fosse, mas como uma experiência autônoma. Tratava-se de “uma criação psíquica que, em contraste com os conteúdos habituais da consciência, se situa, ao que parece, pela sua forma e seu significado, à margem da continuidade do desenvolvimento dos conteúdos conscientes”. Isto é, possuía uma dimensão que não tinha a ver com a experiência do mundo. E, ainda mais, sustentou que “o pensamento onírico é uma forma filogenética anterior ao nosso pensamento”(2).


A afirmação de Jung, certamente, é muito mais significativa que a de Freud. Pois respeita e reconhece o mistério. O psicanalista suíço sustentou que há um mundo nos sonhos que não está remetido à experiência, mas a uma outra realidade, cujos sinais simbólicos, que chamou de arquétipos, lhe pareciam ser universais e desprovidos de temporalidade. Pois estavam presentes em todas as pessoas e culturas, mas também em todos os tempos.


Uma das consequências da sua tese é que afirmação de que não se devem cometer anacronismos, quando se fala do passado, isto é, não se deve entender as pessoas no passado a partir de padrões do presente ou aplicar a outros tempos considerações que são próprias de tempos anteriores ou posteriores a esses, deve ser tomada com cautela. É verdade, de fato, que os tempos são únicos, e muito do que se pensa e se faz tem a ver com as circunstâncias.


No entanto, segundo Jung, há algo que existe no ser apesar do tempo. Freud recusou com tanta veemência essa possibilidade que isso soa como uma resistência, uma posição teórica a ser afirmada por ser mais fácil de ser controlada. Jung, ao contrário, não duvidava da existência desse algo como elemento eterno e universal. Ou seja, o ser é, apesar do tempo, o mesmo em todos os tempos.


A existência dessa polêmica nos aponta, portanto, a imprecisão da afirmação de Freud de que o sonho como espelho do mundo é “uma verdade indiscutível”. É discutível, sim, como Jung o provou, ouvindo e analisando sonhos e símbolos com a mesma insistência de Freud. Jung recuperou a impressão tradicional de que o sonho é a conjugação de dois planos, de dois universos, um finito, outro infinito.


Assim, quando falamos que determinado processo teve início há tantos anos atrás, não estamos querendo dizer que não havia nada semelhante em tempos anteriores. Porque havia. O Iluminismo, em si, não é uma novidade, na forma como irá recusando a existência do mundo espiritual. De diferentes maneiras esse movimento de distanciamento sempre existiu. Isso porque o pecado original, a percepção das marcas da eternidade na alma e outros fenômenos espirituais essenciais integram a nossa condição. E as reações a essas realidades internas sempre presentes são análogas.


Os sinais dessas essências, como Jung reconheceu, são reconhecíveis nos sonhos. E, é claro, disso deriva a percepção de que há algo, em nós, que é eterno: aquilo que chamamos de alma. Foi contra a redução dos sonhos a um eco do mundo que Jung se voltou. Para ele, algo nos fala da eternidade, e nos sonhos se pode, sim, escutar essa voz.




(1) FREUD, Sigmund: A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro, Imago, 1987. p.48

(2) JUNG, Carl Gusrtav: Aspectos gerais da psicologia do sonho in JUNG, C.G., A dinâmica do Inconsciente. Petrópolis, Vozes, 1984 pp. 243 e 253

(na foto, Freud (esq.) e Jung (dir) Universidade Clark, 1909)

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