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A solução da dor da história (IV): a refundação do mundo, no mundo


Edgard Leite Ferreira Neto


No século XIX emergiram novas teorias da história. O objetivo de todas elas seria o de tranquilizar o Homem a respeito do futuro? Ou de apavorá-lo? Insistiram, isso é claro, na supremacia do visível. Porque esta é a grande obsessão do mundo moderno: apenas o que é visto conta.


Três grandes sistemas, principalmente, foram elaborados então, nos meios acadêmicos e políticos europeus. Sua relevância foi significativa entre intelectuais. Mas suas teses centrais sempre apresentaram imensas dificuldades de sustentação, o que as limitou como soluções para as angústias do tempo. Tratam-se das mirabolantes proposições de Augusto Comte (1798-1857), Georg Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883).


É interessante a observação de Eugênio Garin de que, apesar da negativa da existência de um mundo invisível e toda certeza no conhecimento matemático, os termos astrológicos continuaram vivos no universo do pensamento moderno:


“São, de fato, conceitos tipicamente ‘astrológicos' tanto os das ‘revoluções' como os dos 'renascimentos'. Trata-se, obviamente, de conceitos de caráter cíclico, de alternância de 'ocasos' e de 'auroras', de períodos recorrentes nas mutações astrais, extensivos ao mundo humano, às culturas e às civilizações, aos ritmos e às religiões”.


Tais nomes (revolução, renascimento, aurora, ocaso, ápice e muitos outros) são tomadas de empréstimo, do ponto de vista formal, da astrologia. Mas muitos construções teóricas iluministas parecem ser apenas a secularização de muitas outras concepções sobre a história que se desenvolveram em períodos anteriores. E isso encontramos nos três sistemas acima, que são mais respostas secularizadas a temas eternos do que soluções realmente originais.


Como comentamos em “O Despertar do sentido”, por exemplo, a partir de uma observação de Matthias Riedl, quando Augusto Comte construiu sua teoria sobre a sucessão dos três estágios evolutivos na História, o fez, ao que tudo indica, a partir da teoria do místico medieval italiano Joaquim de Fiore (1135-1202) sobre a sucessão de três etapas da história (o tema da história dividida em três fases também aparece no Talmude, aliás).


Escreveu Fiore:


“O primeiro dos três estados [status] dos quais eu falo foi no tempo da Lei, quando o povo do Senhor serviu como uma criança, por um tempo submetido aos elementos do mundo (…) O segundo status foi sob o Evangelho e permanece até o presente, com liberdade em comparação ao passado, mas não com liberdade em comparando com o futuro. (…) Portanto o terceiro status virá no fim do mundo, não mais sob o véu da letra, mas na absoluta liberdade do Espírito. (…) A letra do Velho Testamento pertence ao Pai. A do Novo Testamento, ao Filho. Assim o entendimento espiritual que provém de ambos pertence ao Espírito Santo”


Augusto Comte ressignificou a proposta joaquimita, numa perspectiva secular, tratando de


“três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo”. No último estágio, "o ser humano se preocuparia unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação” as leis efetivas dos fenômenos "a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de similitude”.


Parece claro, portanto, que o império da matemática sem espírito conduziria o ser humano, segundo Comte, a uma compreensão crescentemente completa do funcionamento do mundo. E aquilo que em Fiori era a realização da eternidade, em Comte era o conhecimento das coisas visíveis e a capacidade de controlá-las de uma forma cada vez mais absoluta. Permitindo o gradual controle sobre o surpreendente, no mundo. Se tudo podemos conhecer, de onde virá a surpresa? A ciência nos tranquilizaria.


O extravagante sistema de Hegel também fala da história como o desenvolvimento da realização do “espírito”. Não, evidentemente, do "Espírito Santo”, mas de uma ideia que precede a história e que realiza, no espaço e no tempo, a razão e a liberdade do ser humano. Tratava-se do desenvolvimento do pensamento kantiano sobre o assunto, que também via a História como a história do desenvolvimento da razão humana.


Para Hegel, “a razão domina o mundo e por tanto também na história universal tudo ocorre segundo a razão”. A realização da história, para Hegel, não estava além dela, mas dentro dela, especialmente no Estado: "finalmente, há que considerar a forma que constitui a completa realização do espirito na existência: o Estado". E a culminância do processo histórico realizava-se plenamente no Estado prussiano de seu tempo.


Se o ápice da história era o estado prussiano da época isso certamente não podia gerar tranquilidade em ninguém. Por duas razões principais. Primeiro porque era evidente as instabilidades do Estado prussiano e de qualquer Estado. Segundo, porque tudo, e principalmente os Estados, acabam.


Comte, pelo menos, apontava para um mundo futuro (não agora) de total controle das incertezas. A questão, nele, era acreditar que a ciência poderia suprimir toda angústia humana, estabelecer uma previsibilidade total sobre todos os processos do mundo. Que o Estado não o poderia fazer era evidente, a não ser, é claro, que ele controlasse de tal forma a sociedade que tudo que nela acontecesse pudesse ser previsto e administrado.


Karl Marx concebeu o mais duradouro desses sistemas e, em seu projeto, a história também apresenta um caráter evolutivo, e igualmente caminha para uma realização neste mundo visível: sua proposta é a da instalação, futura, de uma sociedade de iguais, onde o ser humano estará livre das surpresas vindas da natureza (porque é também ordem científica), mas também daquelas oriundas dos próximos. É igualmente um projeto de realização de um conhecimento completo do mundo, como o de Comte, pois é este que permite o controle de tudo, inclusive das individualidades e das circunstâncias que permitem o extraordinário. Capaz de tornar as pessoas livres das surpresas da realidade.


Em princípio partia da ideia de que não há natureza. E, se esta existir, que ela pode ser controlada pela ciência e, acompanhando Hegel, suprimida pelo Estado - o autor por excelência desse mundo perfeito. Ao contrário de Nostradamus, no entanto, que vê todas as tristezas do mundo, ao final, esvaziadas no momento em que os mortos forem julgados e tiverem seu destino eterno traçado, Marx reconhece que todos terão morte definitiva e que dificilmente verão essa sociedade futura, de iguais. A realização desta implicará na superação de todas as contradições sociais e isso é obra de gerações, de infindas revoluções.


Não parece que esse sistema possa solucionar a dor. Pois lutar por algo que nunca se verá e acreditar em algo que é tão contrário à natureza das coisas, que é presidida pelo extraordinário, gera, certamente, angústia infinita. Provavelmente não é, bem como os sistemas de Comte e Hegel, destinado a pacificar as consciências, mas sim a instilar nelas frustrações profundas e contínuas e uma revolta permanente contra a realidade do mundo. Tornar o desespero o motor da existência.


Todos esses pensadores levam o sentido das coisas para o mundo. E desprezam, portanto, daquele aforismo poderoso de Paulo Orósio (c.385- c.420), amigo e colaborador de Santo Agostinho que dizia, simplesmente: “qualquer coisa que é feita pela mão e pelo trabalho do homem colapsa e é consumida pela passagem do tempo”.


(continua)


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