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A Segunda Guerra Mundial não acabou


Edgard Leite Ferreira Neto


A Segunda Guerra Mundial foi uma imensa ruptura no rumo da história. Os seus efeitos se fizeram sentir em todos os aspectos da existência social nas gerações subsequentes. Poucos anos após seu término, já era perceptível que algo de muito sério havia ocorrido no campo da consciência. Em princípio, pode-se dizer que foi absolutamente destruidora, porque uma até antes não vista explosão de imoralidade.


Gustavo Corção (1896-1978) teve essa clareza, embora só tenha escrito algo sobre o assunto nos anos 70. Ele contou que, em 1947, esteve, no Brasil, um certo dominicano, Pe. Louis-Joseph Lebret (1897-1966). Em uma conversa casual, Murilo Mendes (1901-1975) comentou, superficialmente, que “o comunismo é chato porque não tem o senso da poesia”, ao que, surpreendentemente, respondeu o sacerdote: “você é que não entende nada de comunismo”.


Essa observação surpreendeu Corção, porque ele era de uma geração que vivera as atrocidades comunistas na Guerra Civil espanhola, e esse comentário favorável ao comunismo, vindo de um dominicano, indicava uma mudança que não soube imediatamente explicar. Sua resposta a Murilo Mendes dirigia, para um regime terrível, o desejo de que nele existisse o belo. Mas que razão sustentava essa vontade? De onde viera isso?


De certo que uma particularidade da guerra foi que ela conduziu à vitória da União Soviética, um país que, até 1941, quando a Alemanha a invadiu, estava afundado em suas atrocidades, ineficiências, incoerências e delírios políticos. A reação dos soviéticos a esse ataque, reação que contou com o apoio das potências aliadas, EUA e Grã-Bretanha, levou a Rússia a tornar-se potência mundial e passar a vender, universalmente, a sua tragédia social como solução para alguma coisa. Embora continuasse a ser uma sociedade cruel e incoerente.


Isso talvez explique, em parte, a rispidez do dominicano, que se submetia à força de uma nação cuja presença no mundo sempre foi marcada pelas suas emergências surpreendentes, principalmente diante dos ataques da Europa. E era forçado a aceitar esse monstro como parte da realidade e a abdicar de um juízo virtuoso na sua interpretação.


A Guerra mudou o mundo. Mas deve-se anotar que ela foi a culminância de um processo que teve origem institucional na segunda metade do século XVIII, pelas revoluções. Foi uma realização histórica de desejos. Que desejos?


Sabemos que o objetivo do desejo é o bem, e é o conhecimento que motiva a vontade, ao apresentar-lhe algo que pode ser desejado. Mas o desejo se realiza no bem através de decisões instruídas pela razão. E a razão nos aponta as virtudes. Sem estas, a vontade nos dirige para a ruína.


As revoluções dos séculos XVIII, XIX e XX foram solapando, geração após geração, o valor das virtudes e erigindo como objetos do desejo elementos efêmeros da vida, portadores de imenso prazer momentâneo. O ato de escolha, que pode, eventualmente, conduzir à liberdade, passou a ser decisão pela escravidão - por intermédio de diversos vícios aos mecanismos e eventos do mundo.


O elogio dos pecados tornou-se tão forte que tudo passou a ser experiência dessa ausência de limites que é a dedicação ao transitório. Na política, entregou a razão às necessidades concretas e imediatas e desprezou as espirituais; na ciência, cedeu aos desejos de poder e destruição, de morticínio e atrocidade; nos relacionamentos, à satisfação do eu, apenas, nada mais. Daí vinha a resposta agressiva do Pe Lebret: ele estava engolfado por esse movimento. Entendia o feio como belo. O seu objeto de desejo passara a ser o mundo e seus prazeres imprudentes e imorais.


Não há nação nem sociedade que pode suportar semelhantes desejos desprovidos de razão virtuosa como norma. O mundo marchou, portanto, desde o século XVIII, claramente, para o colapso de 1914 - 1945. Mas a guerra não foi até o seu final. Não mostrou toda a grandeza da destruição que os desejos eram capazes de alcançar, porque o morticínio foi tamanho e as armas se mostraram tão destruidoras que aquela guerra declarada precisou encontrar um cessar fogo o mais rápido possível.


Havia problemas a resolver na Europa, entre EUA e URSS, questões sérias no oriente, principalmente no mar da China, dúvidas morais e éticas infinitas. Mas a entrega às coisas do mundo mostrou que os desejos podiam ir muito além de qualquer perversão anteriormente sonhada. Eram capazes de trucidar multidões. Foi necessário um armistício.


O transe bélico global foi encerrado porque era intolerável aos seres humanos sua manutenção naqueles termos. Mas a guerra continuou, nos últimos setenta anos, caminhando pelo mundo, acalentando e realizando aqui e ali seu potencial de destruição, e, o mais interessante, sem que precisasse ser de novo declarada. As sociedades seguiram insistindo na ausência dos limites éticos e morais nas decisões e aprofundando a cegueira para o espírito e a escravidão à transitoriedade.


Sem condições de se tornar guerra aberta global, o conflito se desenrolou no espaço da consciência do Homem, destruindo toda razão, toda virtude, toda escolha virtuosa. Toda sensatez.


Ela continua, portanto, e sinaliza sempre, na sua constante tensão, que tudo contamina, a possibilidade de se tornar, novamente, evento real. As tensões que gera, de forma contínua, nos últimos setenta anos, acumulam imensa energia destruidora. Ao revelar a obra iluminista em toda sua plenitude catastrófica porá fim ao elogio insensato das coisas do mundo? Convidará os homens ao caminho das virtudes? .


Mas o fato é que a Segunda Guerra Mundial, nos seus horrores, não foi capaz de tornar detestável a capacidade humana de se inclinar para o mal. Provavelmente porque não mostrou toda sua potência. Os desejos, sem razão virtuosa, são capazes de devastar as sociedades de uma forma terrível e absoluta ainda mais assustadora do que em 1939-1945. Porque muitos tomam, como no Padre Lebret, aquilo que é feio como se fosse belo. E marcham na direção da destruição como se caminhassem para a plenitude. E esta é, na verdade, a essência do projeto político iluminista.


Como podemos seguir na direção do bem e buscar o verdadeiro sem que soframos e reconheçamos a nossa própria tragédia interior? A guerra, não concluída, lateja na consciência das gerações que herdaram sua sombra. Precisa se realizar e terminar, para que dela nos tornemos livres: tanto da utopia iluminista que a engendrou quanto das ilusões que temos sobre a natureza dos objetivos da vida.

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