por Edgard Leite, Diretor do Instituto Realitas
Em 1984 a historiadora americana Barbara Tuchman (1912-1989) publicou um livro notável: A Marcha da Insensatez.
Nesse livro Tuchman falou de um problema recorrente na história, “em qualquer lugar ou período: o fato de alguns governos seguirem políticas contrárias ao seus interesses”.
Ela não se referia a atos de soberanos autocráticos, ou a atitudes extemporâneas de governantes.
Mas à adoção de políticas insensatas, que se voltam contra “o interesse de tudo que conduz ao bem-estar ou benefício do Estado e dos governados”.
E não apenas sustentadas por um governante ou núcleo governativo. Mas sim por um amplo grupo social, composto não somente de membros do governo, mas também por governados.
A existência da insensatez na história pode ser provada não quando a olhamos retrospectivamente. Mas quando, em sua própria época, é percebida como opção errada, contraproducente. E quando é escolhida mesmo quando existem outras proposições viáveis alternativas.
Tal fenômeno é recorrente, e possui uma dinâmica misteriosa.
Ocorre nos momentos em que se acredita que a autoridade política deve ser capaz de dar continuidade aos discursos que a legitimam, ou a legitimaram no passado. Especialmente quando estes estão no seu limite operativo, ou em crise terminal.
E tal limite é usualmente alcançado em algum momento. Porque a realidade é sempre maior que a capacidade humana de administrá-la. E tudo, no mundo, está em movimento. Mas o poder, ilusoriamente, tende à imobilidade.
Assim, por exemplo, escreve Tuchman, o Japão concebeu o mirabolante plano de atacar o território dos Estados Unidos, em 1941.
Esse projeto nunca foi bem avaliado, no Japão. Sempre se ponderou sobre os seus riscos. Enfrentar os Estados Unidos trazia ameaças imensas às estratégias japonesas. Não escapava, a muitos, a imensa superioridade dos EUA em todos os campos.
Sempre se argumentou, no Japão, que o país poderia continuar sua expansão na Ásia, contra holandeses, franceses e ingleses, se fortalecendo, sem trazer para a luta os americanos.
No entanto, por que se impôs essa atitude insensata?
Porque, respondeu Tuchman, “durante mais de uma geração” o Japão se expandira pela Ásia, dominando populações mais frágeis do ponto de vista político, enfrentando adversários menores no campo militar.
E convencera a todos que isso era caminho para um "império mundial”.
E, naquele momento, 1941, nenhum outra atitude tinha magnitude suficiente para dar conta das expectativas do projeto, da narrativa, que não o desafio aos EUA.
Qualquer outro desafio pareceria ao governo, aos políticos, ao Exercito e povo motivados, como uma desqualificação da essência da ordem vigente: a busca do império mundial. O sistema, políticos e povo, "se tornara prisioneiro de suas excessivas ambições”.
E estava claro que o Japão não podia ir além daquilo que já tinha. Que não era, de forma alguma, um "império mundial".
A insensatez, portanto, é fruto das ambições dos projetos políticos. E da necessidade de sustentá-los na sua crise.
Parece-nos, a partir de Tuchman, que é uma experiência inevitável: há um momento em que as ilusões do poder não correspondem mais à realidade das coisas.
É necessário reafirmá-las. Mesmo contra o bom-senso e contra a realidade. E mesmo que isso se volte contra "bem-estar ou benefício do Estado e dos governados”.
Digamos que um modelo político dominante, por exemplo, defenda que seu objetivo é garantir a infinita expansão da prosperidade material e da vida.
No entanto, quando a realidade expõe o fato de que não pode haver infinita prosperidade e imortalidade, o sistema derivará para a insensatez.
Defenderá a prosperidade e a vida mesmo que isso implique no colapso das próprias vida e prosperidade. Porque o que se busca é defender o poder político dominante de seu inevitável fim. O fim chegou, mas os políticos, e aqueles que os sustentam, se recusam a reconhecer o vazio presente de suas proposições fundadoras.
E são forçados a apostar tudo nelas. Porque nelas reside seu poder e sua identidade.
Não há outra saída. A insensatez é resposta humana às suas ambições desmedidas ou cegas. Será assim também nas vidas pessoais? Talvez.
Barbara Tuchman cita a frase do Conde Axel Oxenstierna, Chanceler da Suécia durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que refletiu, no seu leito de morte: “Saiba, meu filho, com que pouca sabedoria se governa o mundo”.
O poder tem, como um de seus possíveis frutos, a insensatez. E quanto maior o poder e seus interesses, gigantesca pode ser a insensatez.
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