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Caminhando para um novo renascimento



Edgard Leite Ferreira Neto


Quando se estuda o antigo Egito, é bom começar lendo a tábua cronológica das dinastias e dos faraós, que, normalmente, cobre um período que vai de 3150 a.C a 30 a.C. São 3120 anos de uma história que começa com o faraó Narmer e termina com Cleópatra VII e seu desafortunado filho Cesarion (há um filme célebre sobre este último acontecimento: Cleópatra).


Ora, três mil anos de história é um período muito longo, considerando o tempo com o qual lidamos hoje. Na estimativa temporal corrente, o início da nossa história remete a acontecimentos que tiveram lugar na época do Imperador Cesar Augusto (63 a.C- 14 d.C), na Judéia. Há 2022 anos atrás.


Tomando isso como termo de comparação, depreende-se que muita coisa aconteceu ao longo de 3120 anos na história do Egito. Chama a atenção do estudante, por exemplo, na cronologia da história antiga egípcia, a existência de três chamados “períodos intermediários”. Isto é, momentos em que a estável sucessão de faraós, que corresponde a projetos dinásticos consistentes e repletos de achados arqueológicos, foi, circunstancialmente, interrompida. Tais interrupções ocorreram entre 2183–2060 a.C. (123 anos), 1802–1550 a.c. (252 anos), 1070-712 a.C. (359 anos).


Os "períodos intermediários” foram momentos anárquicos, de crítica às instituições e crenças, de ausência de um projeto político definido, ou nos quais o Egito foi assaltado por povos estranhos que interromperam, de diferentes maneiras, a sua tradição de continuidade administrativa e cultural. Certamente, muitos daqueles que viveram naqueles momentos, e neles viveram por várias gerações, tinham a impressão de que o mundo que havia antes não apenas não existia mais, mas também não mais retornaria. O futuro lhes parecia, assim, muito obscuro.


E, de fato, o Egito que emerge dos “períodos intermediários”, não é, evidentemente, o que existia antes dessas longas crises civilizacionais. Mas, curiosamente, elementos que tinham sido colocados seriamente em dúvida durante os períodos críticos (por exemplo, a centralidade do poder do Faraó, a crença no mundo de Osíris, a estabilidade social milenar, o poder dos sacerdotes), renasceram reciclados. E de tal forma se fortaleceram ao longo dos milênios, que mesmo quando o macedônio Alexandre o Grande tomou o Egito em 332 a.C, ele não teve outra alternativa se não a de ser coroado Faraó, mostrando o poder impressionante da identidade e da cultura egípcias, sobreviventes a toda crise interna.


Essa observação sobre o antigo Egito é útil porque quando vivemos uma, duas, cinco ou mais gerações dentro de um mesmo quadro de crise, de questionamento dos poderes, das instituições, das tradições e das crenças, podemos tender a achar, como alguns egípcios dos períodos intermediários o faziam, que a nossa civilização está acabada. Mas a verdade é que situações de crise, nas civilizações, são normais, e promovem ajustes importantes. Após os "períodos intermediários", os egípcios experimentaram momentos de renascimento de seus elementos civilizacionais.


Assim, mesmo quando os secularizadores do século XVIII expulsaram os jesuítas das universidades, ou os revolucionários do século XIX decretaram o “fim da filosofia”, ou a política se tornou o espaço da psicopatia, recusando toda virtude, no século XX, ou os departamentos de filosofia deixaram de lecionar metafísica, no século XXI, continuou-se a ler Platão e Aristoteles. Da mesma forma, quando Baruch Espinoza atacou a Bíblia, Julius Wellhausen desmontou, sob aprovação geral, o Pentateuco, ou a história bíblica foi proibida de ser ensinada nas escolas e o único humor possível passou a ser aquele feito sobre Jesus Cristo, nunca as Bíblias deixaram de ser publicadas, em tiragens cada vez maiores. Embora sob constante ataque, os elementos centrais de nossa civilização subsistem e se fortalecem.


Alguém pode argumentar que comparar nossa civilização com a civilização egípcia é um absurdo. De fato o é, de certa maneira. O universo espiritual egípcio não tinha a solidez conceitual, filosófica e religiosa que é própria do Ocidente e que este elaborou, institucionalmente, ao longo dos séculos. O maior desafio intelectual dos egípcios era ter algo que lhes desse consistência espiritual. Assim como esta é fornecida pelo amor, a fé e a esperança. Isso, de fato, buscavam, e deve-se anotar a frágil experiência do quase monoteísmo do Faraó Aquenáton (?-1336 ou 1334 a.C.).


Não por acaso os egípcios tornaram-se imediatamente receptivos ao cristianismo, quando este se espalhou pelo mediterrâneo oriental, no limiar de nosso tempo. E o abraçaram com entusiasmo. Porque permitiu que evoluíssem da crença no mundo de Osíris para uma visão do paraíso eterno, elevando seu entendimento da relação entre a vida neste mundo e a vida eterna. E isso, sim, deu condições para uma ruptura com o que eram, para uma verdadeira nova existência.


Mas a realidade é que todos os seres humanos, individualmente, também passam por períodos de tribulação, de onde emergem fortalecidos em sua identidade e senso de destino. A partir dos quais renascem. A experiência do renascimento não é excepcional no humano. Na verdade, é parte de sua jornada, nas idas e vindas dos desafios postos pelo mundo ao espírito.


A solidez de tradição espiritual do Ocidente é imensa, e atravessa esses longos séculos de crise com muita persistência, aprendendo e ampliando seu entendimento da história e do papel, nela, dos seres humanos. Os “períodos intermediários” liberam todas as críticas, todas as divergências, todas as dúvidas, toda a desordem. Preparam novos renascimentos. Não é este o nosso único período de crise. E nem será o próximo renascimento o último. Houve outros antes e haverá outros no futuro.


E assim percebeu o salmista:


"Descansa no Senhor, e espera nele; não te indignes por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do homem que executa astutos intentos. Porque os malfeitores serão desarraigados; mas aqueles que esperam no Senhor herdarão a terra. Pois ainda um pouco, e o ímpio não existirá; olharás para o seu lugar, e não aparecerá. Mas os mansos herdarão a terra, e se deleitarão na abundância de paz"( Sl 37: 7-11).

E, é claro, cabe-nos fazer o trabalho que de nós é esperado nestes tempos de dor: caminhar para o renascimento. Assim como, no tempo, caminhamos para um renascimento na eternidade.

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