top of page

Estudar história com serenidade


Edgard Leite Ferreira Neto


Uma aluna, outro dia, me disse que estudava o passado. E que o fazia com "paixão e ira". Essa afirmação ficou flutuando na minha consciência por algum tempo. Até que percebi que eu não estudo o passado assim. De fato, ainda mais: eu não me lembro de nada ter estudado dessa maneira.


Primeiro, porque eu não estudo, ou lembro, com ira. Não há em meu coração, ao estudar, escolhas cegas. Teimosias. Ressentimentos. Indignações. Mas sim, principalmente, compaixão. Amor ao ato de ler e estudar e ao processo pelo qual o tempo vai fluindo, as vidas vão passando e as gerações vão se sucedendo.


A melancolia decorrente da percepção da existência dessas inumeráveis vidas e mortes é absorvente e me causa um sentimento agradável. Vejo sempre as pessoas se moverem de uma forma tão altiva, quando, na verdade, o que elas são é “poeira e cinza”, e quando o espírito lhes é retirado o seu corpo volta a ser pó.


É claro que percebo nisso tudo algum mistério que vai se insinuando entre as coisas e gerando acontecimentos imprevisíveis, que sempre acabam tendo algum sentido maior, que só se percebe com o tempo. E sinto sempre a presença do mistério no passado, embora nem sempre registrado documentalmente.


E, segundo, não o faço como ela faz, porque a ira é um sentimento ausente de meus estudos. Cada vez mais, a cada dia que passa, estudar o passado é um ato envolvido em profunda serenidade. E também em ternura e perdão. Grande parte dos meus cotidianos conflitos com a rede de produção de conhecimento repousou sempre nesse movimento interior para superar a ira, ou no de superar a paixão.


A cultura da raiva, da indignação, sempre me pareceu a cultura do ressentimento contínuo, interminável. E algo que turva a leitura do passado. Pessoalmente, a revolta foi desaparecendo como atitude ao longo dos anos. A ira alheia deixou, aos poucos, de me contaminar. Principalmente, passei a não me impressionar com esses acontecimentos horríveis que os livros de história nos trazem.


Isso não quer dizer que eu deixe de avaliá-los do ponto de vista moral e rejeite diversos deles, enquanto terríveis manifestações do espírito humano. Ou do Mal. Mas, raiva? Ira? Certamente não. Tristeza profunda, muitas vezes. Mas que emerge do interior de uma contemplação contínua de inumeráveis enigmas. O enigma do Holocausto, por exemplo.


Há nesse acontecimento um mistério profundo, alguma coisa que extrapola o limite das decisões humanas comuns, mesmo em tempo de guerras. Ele nos diz algo não apenas sobre o poder do mal no mundo. Que é absoluto quando toma as consciências. Como a mentira o faz. Mas fala também sobre o mistério da história, que é total, quando nada podemos fazer para deter ou alterar seu movimento. Eu o contemplo, impressionado, como num promontório olhamos o mar azul escuro e o céu cinza chumbo antes de uma tempestade.


É compreensível que Gustavo Corção tenha ficado horrorizado com o século XX, por exemplo. O “século do nada”, ele chamou. Mas com qual século nos podemos animar? Qual século, qual tempo, qual existência não flerta com o nada? A opressão, os vícios, as misérias, a pobreza, a material e a existencial, fazem parte daquilo que entendemos como a condição humana.


"Pois nunca deixará de haver pobre na terra”(Dt 15:11). Sempre entendi isso com toda sua profundidade ontológica: nunca deixará de haver pobreza em mim. Em grande parte porque há uma limitação intrínseca no próprio ser. Que sempre existiu. E uma fragilidade absurda nas relações que estabelecemos entre nós, e com o mundo. E portanto, a pobreza também faz parte daquilo que somos. E se a pobreza do espírito é universal, a material é dimensionada por padrões sempre relativos. Sendo tudo no mundo efêmero, o que nos torna ricos é aquilo que valorizamos para além dele. E podemos nada ter de valor mesmo possuindo um universo inteiro.


"A imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice”(Gn 8:21). Por que eu não deveria aceitar tudo isso que está nos livros e arquivos como parte de mim, parte do que é o ser “desde a sua meninice”? Porque ira e paixão contra o passado? Contra meu passado? Contra mim mesmo? Mas não é essa aceitação que me convida ao bem, à elevação moral? Todos os horrores do passado são sempre entremeados por sentimentos e atitudes daqueles que os recusam. Pois o horror é sempre reconhecido como tal. A grande luta da história não é para fazer o mal, mas para livrar-se dele. E é este movimento que caracteriza o Homem na história.


É claro que o nada atua sempre e eu diria que o “século do nada”, o inimaginável século XX, foi uma de suas maiores obras. O último século abriu tão profunda cratera na alma humana que esta entrou em desespero, clamando para ser preenchida por Deus. Ou para preenche-la com espuma. Mas quantas crateras não são abertas ao longo da história? E quanto do desespero humano é a luta por preencher vazios?


Estudar o passado é, para mim, uma ação contemplativa. Ali há previsibilidades e universalidades bem como surpresas inexplicáveis. Aceitá-las é entender que estamos imersos no tempo. Atônitos e espantados todos: nós, os vivos, e aqueles que já se foram.


A serenidade é o grande desafio da consciência. Pois na serenidade aceitamos a realidade de nossa condição e sua naturalidade, e faz-se a alquimia das nossas angústias com as dos outros. Também aceitamos, no passado, realidades e naturalidades, perplexidades e reações. E devemos faze-lo, porque estão na origem do que somos e dão sentido à nossa integridade presente.


Olhei minha aluna com atenção e só pude dizer a ela que estava muito distante da "paixão e da ira" e que me via diante do estudo da história como quem está num promontório num dia claro e fresco e vê, no mar distante, no local em que se une com o céu, a presença pura da serenidade.

28 visualizações1 comentário
bottom of page