Henry Kissinger, a Inteligência Artificial e o fim do Iluminismo
- Edgard Leite Ferreira Neto
- 27 de jun.
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Em textos anteriores nos referimos à fantasia alquimista e cabalista que sustentava ser o Homem capaz de criar vida (ou alguma forma de), através das tentativas hipotéticas de produzir golens ou homúnculos. Estes seriam pseudohomens criados a partir de matéria inanimada (barro, por exemplo, no caso dos golens) ou animada (carne, sangue, esperma, no caso dos homúnculos). Tal expectativa, entretanto, sempre apresentou inúmeras dificuldades práticas para ser realizada.
Mas o desenvolvimento das universidades a partir do triunfo iluminista permitiu que muitos processos naturais fossem conhecidos e certas ideias de domínio das circunstâncias pudessem adquirir consistência no mundo. Entre elas, por exemplo, a viabilidade da criação de tipos de golens e homúnculos.
Isto se tornou realidade através da possibilidade de construir robôs andróides e da geração de uma inteligência artificial capaz de atuar de forma autônoma do seu criador. A fonte inanimada do material com que podem ser construídos, metal, plástico, energia, os situaria mais no âmbito dos golens.
Podemos entender isso como uma culminância de um movimento iniciado pelo Iluminismo. Assim como a Segunda Guerra o foi. Esta porque todas as crenças na capacidade humana de construir sociedades a partir do nada, de uma u-topia, um local inexistente, que pudessem ser perfeitas, na prática redundaram na destruição do humano, que é imperfeito.
Nazistas, comunistas e democratas se destruíram uns aos outros de forma insana por crerem nessa quimera da capacidade humana de construir uma sociedade artificialmente perfeita. De tornar real, num lugar imperfeito, a sociedade dos homens, algo que ocupa, por ser perfeito, um lugar inexistente no mundo.
A construção de andróides se insere nesse movimento, porque defende a possibilidade do Homem de exercer um poder que não lhe é próprio: o de criar vida. Na verdade de algo que parece vida, embora não o seja, definitivamente, pois não é feito de matéria orgânica, isto é, o andróide ou a inteligência artificial.
Os romances de antecipação, um fruto característico do pensamento iluminista, nos quais são extrapolados os avanços da ciência no campo do fantástico, tiveram como um de seus subgêneros mais importantes aquele que trata da criação de vida artificial. Pelo menos a partir de Frankenstein, de Mary Shelley (1818). Tal tema se tornou tão importante na literatura e no cinema quanto outro relevante assunto que nos vem de alguns dos fundadores do Iluminismo, Giordano Bruno e e Johannes Kepler: a possibilidade de que exista vida em algum outro lugar que não seja aqui na terra.
Mas no caso dos andróides e da inteligência própria deles, que seria, obviamente, artificial, a permanente proximidade do alcance desse objetivo desperta ansiedades, entusiasmos e temores diversos. A possibilidade de termos escravos que, embora sendo inumanos, trabalhem de forma autônoma e pensem por nós gera muitas especulações, da mesma forma como a realização do estado socialista, ou nazista ou o que seja, despertou encantamentos e terrores no limiar das primeira e segunda guerras mundiais.
Henry Kissinger (1923-2023), em um célebre artigo publicado na Atlantic, em 2018, intitulado Como o Iluminismo acaba, discutiu o tema. Para nós parece claro que a II Guerra Mundial ameaçou o Iluminismo, não por ser contra ele, como pode ser entendido de maneira superficial, mas sim por ser sua realização, na medida em que todas as forças ideológicas nela envolvidas eram filhas diretas do pensamento revolucionário do século XVIII, inclusive o racialismo.
Foi apenas o fim precoce da guerra, dada sua absoluta insustentabilidade, que salvou a humanidade. Não havia como o Japão continuar em guerra e existir ou os EUA seguirem lutando contra a União Soviética, estando todas as suas sociedades absolutamente exauridas. Foi esse fim precoce, via recurso aos princípios iluministas da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que salvou o mundo de sua quase total aniquilação naquele momento. Podemos dizer que esses recursos eram previsivelmente falhos, porque promotores da artificialidade extrema da política, mas foram eficientes naquelas determinadas circunstâncias, onde a ilusão se fazia presente por ser necessária.
Mas Kissinger percebeu um outro caminho de colapso das sociedades iluministas. Trata-se da existência de um paradoxo que o desenvolvimento científico dos últimos séculos proporcionou. O objetivo do sistema filosófico iluminista é, supostamente, a potencialização intelectual do Homem, mas ele criou, ao mesmo tempo, as condições perfeitas para a construção de uma inteligência externa ao Homem, igualmente potencializada.
"O Iluminismo trabalha com a submissão do pensamento tradicional a uma razão humana livre e analítica" observa Kissinger. O que está em curso, atualmente, não é, no entanto, uma automação "que lida com meios" e que poderia dar crescente espaço para a liberdade do pensamento, mas sim a inteligência artificial, "que lida com fins" e que submete hierarquicamente, descartando e substituindo, o pensamento humano. Isto é, negando-lhe liberdade, a potência de decisão.
Há ainda um outro paradoxo, aponta Kissinger: "o avanço tecnológico que mais alterou o curso da história moderna foi a invenção da imprensa no século XV". O Iluminismo se propõe a ser uma cultura do livro, mas acabou por minimizá-lo ao propiciar a generalização de uma cultura audiovisual, via internet, evento com claras implicações no processo formativo e na lógica dos processos de aquisição e produção de conhecimento.
Para nós, como já tratamos em A morada do Homem e novamente em Tempo, eternidade e sentido da vida, não há novidade nessas observações, ou seja, a de que o Iluminismo conduz à destruição da pessoa, e não ao seu fortalecimento.
E nos parece evidente que, no caso da Inteligência Artificial, tal processo de liquidação, como em outros movimentos iluministas, muito dificilmente terá sucesso na sua pauta destruidora. Acima de tudo porque o projeto iluminista ignora o caráter subjetivo, espiritual e imaterial da história. "O computador", afirma Kissinger, "pode vencer jogos, mas os jogos não existem para serem vencidos, e sim para serem pensados".
Os fatos de que pensar é mais relevante que ganhar, viver é mais importante que vencer, encontrar a verdade é mais forte do que se entregar à mentira, o Homem é mais que o gólem e a eternidade é maior que o tempo, nos livram da catástrofe absoluta. É muito difícil deixar de considerar que, diante dessas verdades e da desgraça que trazem ao ser negadas, não há outro movimento pertinente que não retornar o olhar para a substância, o verdadeiro, o essencial, e suportar, com serenidade, o avanço e a dinâmica das ilusões humanas. Em todos lugares presentes, em todos os lugares se dissolvendo diante da verdade.
Kissinger, Henry: “How the Enlightenment ends” in The Atlantic, June 2018.
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