Edgard Leite Ferreira Neto
Herman Melville (1819-1891) foi um escritor, nascido em Nova York, integrante de um movimento literário conhecido, posteriormente, como Renascimento Americano. Sua obra é cheia de inquietudes espirituais e a sua narrativa repleta de simbolismos. Seu maior romance é Moby-Dick. Seu conto mais famoso chama-se Bartleby. O primeiro conta a história de um capitão obcecado com a caça de uma baleia branca mítica. O segundo é sobre um escrevente de escritório que renuncia, aos poucos, a toda ação no mundo.
Mas há um conto menos conhecido chamado O Homem do Para-Raios (1854). Neste, Melville conta a história de um eremita que está em sua casa, nas montanhas, numa noite de tempestade. Nessas circunstâncias, (da mesma forma que, num célebre poema de Edgar Allan Poe, uma pessoa na mesma situação é visitada por um corvo), tal homem recebe a visita de um comerciante de para-raios.
O comerciante, vindo assim do nada, procura mostrar, no meio de uma tormenta real, que é necessário comprar um para-raios para impedir um acidente mortal. Enquanto os raios caem ao redor da casa, o vendedor explica em que lugar da residência, durante a conversa, o protagonista deveria permanecer para evitar ser um condutor da descarga elétrica. Não pode ficar junto à lareira, não pode tocar em qualquer tranca, mas apenas deve ficar de pé no centro da sala, sobre um tapete. Se não, pode ser atingido por um raio.
O protagonista persiste, no entanto, em ficar junto à lareira. O comerciante, sem se importar, explica que, mesmo com cuidados, a melhor solução é comprar um para-raios. Explica o funcionamento e a utilidade do mesmo. O protagonista, cético, aponta casos em que mesmo o para-raios não impediu a queda de um raio. O vendedor, cientificamente, explica porque isso aconteceu e assegura que, sanando os possíveis problemas técnicos apontados, o para-raios de fato impede que ocorra uma catástrofe. O para-raios dissipa qualquer medo humano durante uma tempestade.
Nessa parábola, Melville sustenta que o vendedor do discurso científico também vende ilusões, além de para-raios. Isso porque ele afirma que é possível livrar o ser de um raio, ou, melhor dizendo, do extraordinário, do acaso, do surpreendente. E sendo o raio um dos mais expressivos símbolos do poder do Deus de Israel (Ex 19: 16-22), é evidente que, metaforicamente, ele busca vender a ideia de que é possível, através da ciência, tornar o ser imune à realidade de Deus, que é o extraordinário. E o maior dos eventos imprevisíveis é a morte.
O protagonista, diante disso, é forçado a dizer simplesmente: “o senhor, simples mortal que aqui vem colocar-se, e mais esse cano, entre a terra e o céu, imagina que pode igualmente desviar o raio que vem do alto? Quem lhe deu o poder de mascatear indulgências que libertem das divinas ordenações? Os fios de nossos cabelos estão todos contados, bem assim os dias de nossa vida. Com chuva ou sol estou à vontade nas mãos do meu Deus”.
Melville, certamente, como marinheiro e, portanto, sabedor do poder da técnica, da ciência e do conhecimento enquanto elementos essenciais para uma boa navegação, recua não diante da ciência do vendedor de para-raios, que sabe ser real, nem da utilidade do para-raios ele mesmo, mas sim diante das ilusões que ele vende, junto com tudo isso. A principal: a de que poderíamos conseguir, pela ciência, o total controle do extraordinário.
Tendo-o expulsado, afinal, de sua casa, (ao contrário de Poe, cujo corvo o assombra para sempre), o protagonista reflete no fato de que, em nome do medo do surpreendente, a ciência torna-se mais do que é: "a despeito do tratamento que lhe dera, e da conversa que tive com os vizinhos para dissuadi-los, o homem do para-raios ainda reside na região, viaja ainda em tempos de tormenta, e faz próspero negócio com os medos do Homem".
A ciência tem um lugar, mas não todo lugar. E nosso medo fundamenta muitas ilusões sobre suas capacidades. Quem aceita o império do extraordinário, sugere Melville, não tem medo, nem ilusões, pois sabe que tudo, inclusive o desenvolvimento e mesmo a aplicação da ciência e também o momento da queda dos raios, são determinados por circunstâncias incontroláveis. E o inusitado é atributo de uma inteligência maior que nunca poderá ser dominada. O medo se dissipa quando se percebe que o inusitado não o é. Pode-se comprar um para-raios. Mas não deve-se acreditar que, através dele, estejam a nós submetidas as forças tremendas que circulam entre o céu e a terra.
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