por Edgard Leite, Diretor do Instituto Realitas
A obra de Julio Verne (1828- 1905) possui grande significado intelectual.
Os seus livros refletem, basicamente, sobre o alcance da potência humana no mundo. A partir da utilização da ciência.
Verne expressou, pioneiramente, nas décadas anteriores à I Guerra Mundial, o fascínio - e o desconforto - que o desenvolvimento tecnológico despertou nas consciências do Ocidente.
E todas as ilusões e paradoxos que gerou nas sociedades.
Estamos, hoje, imersos em um mundo altamente tecnológico. Mas foi no século XIX que os efeitos práticos dos avanços científicos se fizeram sentir no cotidiano, de forma generalizada e surpreendente.
Verne foi um dos primeiros escritores e a refletir sobre esse assunto. E o fez de forma prospectiva. O futuro imediato das possibilidades era o seu tema central. Os seus paradoxos e contradições o cerne de suas preocupações.
As transformações do século XIX sinalizaram muitas possibilidades: a diminuição, ou eliminação, das distâncias entre as pessoas; a ampliação da capacidade de ver coisas antes não vistas; a eventualidade de conhecer e manipular processos que foram, por milênios, desconhecidos.
Todas essas possibilidades repousavam essencialmente no fortalecimento da matemática, da física e da química, como disciplinas livres de subjetividades.
A perfeição dos relógios, o bom funcionamento das redes telegráficas, a nitidez das fotografias e dos filmes e a estável velocidade das locomotivas eram frutos de cálculos corretos e de precisas montagens mecânicas.
Há sentimento das máquinas? Claro que não, diz Verne. Mas quanto maior o domínio do engenho, maiores as possibilidades humanas. Inclusive para a expansão de seus sentimentos.
Pode voar um aparelho mais pesado que o ar? Para Verne a resposta é matemática: sim. É possível ir à lua? Pela matemática, sustenta Verne, sim.
A perfeição dos números alcança o mais pesado que o ar, e a lua.
Mas o ser humano está, diante desses fenômenos, imerso em uma pluralidade de sentimentos, que nada tem a ver com as quantificações que conduzem o seu destino. Os personagens de Verne são múltiplos, nesse sentido, diante da tecnologia.
Podem, os homens, ser entusiastas desprendidos, como Michel Ardan (Da Terra a Lua e Ao Redor da Lua), por exemplo, que embarca, de forma aventureira, numa viagem à Lua.
Curiosos, como Phileas Fogg (A Volta ao Mundo em 80 dias), que se arrisca a dar uma volta ao mundo em tempo recorde, por conta de uma aposta distraída.
Desinteressados, que apenas acompanham a ciência sem querer sequer entende-la, como Hans Bjelke (Viagem ao Centro da Terra), que viaja de forma muito displicente ao centro da terra. Como se estivesse passeando pela cidade.
Engenheiros frios, como Cyrus Smith, (A Ilha Misteriosa) profundo conhecedor da ciência de seu tempo e que apenas aplica o conhecimento. E o vai aplicando, sem manifestar surpresa pelo seu extraordinário sucesso.
Engenheiros atormentados, como Robur (Robur o Conquistador, Senhor do Mundo), que constrói uma máquina de voar e que tem pretensões angustiadas de extrair do mecanismo um poder universal.
Engenheiros deprimidos, como o Capitão Nemo (20000 Léguas Submarinas e A Ilha Misteriosa), que constrói um submarino, mas que é, ele mesmo, imerso em tristezas infinitas e tomado por uma permanente sensação de impotência.
Na obra de Verne, no entanto, em todos os lugares estão as máquinas, reduzindo as distâncias, potencializando a destruição e a cura.
E, em torno delas, manipulando-as, ou tentando manipulá-las, os seres humanos.
Entusiasmados e apavorados por tudo que representam. Pelas possibilidades sempre surpreendentes que abrem, pelo sentimento de infinita potência que transmitem.
O universo paralelo construído por Verne é, sem dúvida, um esboço analógico da nossa era digital. É o nosso mundo. Qual o objetivo disso tudo? Se pergunta Verne.
Poder e mais poder, certamente. Mas também vingança, como o prova o ressentido Nemo. Desejo de ser importante em algo, como Hans. Vaidade, como muitos. Encantamento. Um universo de emoções que encontram na ciência um meio de manifestação.
Ou, apenas, o amor. Como o sensível Phileas Fogg, cujo maior ganho de sua rápida viagem em torno do mundo foi o encontro, não previsto, do amor de sua vida, Aouda.
Muitos dos romances de Verne são narrativas nas quais o aumento da potência humana satisfaz, profundamente, as consciências. Mostram que, pela ciência, os protagonistas se movem acreditando que podem tudo.
No entanto, há um romance muito singular, nesse sentido. Trata-se de Sans dessus dessous (Fora dos Eixos, em português), publicado em 1889.
Nesse livro, um grupo de empresários muito ambiciosos atua para alterar o eixo da terra. O objetivo era uniformizar as estações e poder explorar economicamente o polo. Sem se preocupar com outras consequências dessa intervenção.
A tentativa em si é calculada em detalhes e aprovada em seus números. Um imenso canhão é enterrado próximo ao Kilimanjaro, com o objetivo de disparar um projetil, cujo recuo acertaria o eixo da terra.
A questão é um desdobramento de toda literatura verniana. Podemos mandar um homem à lua? Podemos voar? Andar sob o mar? Dar uma volta ao mundo em 80 dias? Podemos. Podemos então alterar a natureza das coisas?
A questão é que nenhuma dessas ações altera, em si, a natureza das coisas. Ir à lua, andar num avião, num submarino, são, precisamente, atos que envolvem a manutenção da natureza das coisas. É a matemática do mundo, sua física, a estabilidade de suas leis, que permite que tudo possa ocorrer na mecânica.
Mas, digamos que o eixo da terra deva ser alterado. Quanto de energia é necessário para transformá-lo? Não sabemos dizer. Trata-se de uma configuração misteriosa da natureza.
Nós podemos colocar tal configuração a nosso favor, quando plantamos, por exemplo, e observamos as estações e os períodos de chuva e seca. Mas não conseguimos alterá-la, porque estamos imersos nela, emergimos dessa natureza. Surgimos desse mundo cujo eixo tem uma certa inclinação.
Somos homens, não Deus. Deus, sim, é externo ao mundo e pode move-lo.
A perspectiva verdiana, portanto, é a de que por mais que avancemos em conhecimento, sempre seremos incapazes de alterar a essência da natureza das coisas.
Poderíamos ser capazes de alterar o clima da terra? Para Verne o imediatamente local, talvez. Em nosso favor, ou contra nós. Podemos construir estufas. E há uma grande destruição na região onde o canhão de Fora dos Eixos é disparado. Mas o fundamento do clima, a natureza que o coloca em movimento, nunca. Somos menos do que ela.
O gigantesco canhão, enterrado próximo ao Kilimanjaro, é disparado, para desespero de toda a humanidade. Mas, embora cause destruição no local, o eixo da terra mantêm-se intacto. A falha é atribuída a um erro de cálculo. Seria isso mesmo? Seria possível levantar tanta energia?
Esse é um tema fundamental, que continua vivo, apesar de todo encantamento que gera a ciência. Vivemos mais? Sem dúvida. Mas deixaremos de morrer? Não mesmo.
A compreensão dessa realidade maior nos ensina a humildade diante do poder da ciência.
Por isso, talvez, em Verne, os mais tranquilos e simpáticos personagens são aqueles que usam da ciência para se divertir, como Ned Land; para trabalhar, como Hans Bjelke ou Cyrus Smith; ou apenas para apreciar a existência e amar, como Phileas Fogg.
Todos os que acreditam que a ciência pode alterar o mundo ou a realidade sofrem e se amarguram. Entre eles, acima de tudo, o trágico Capitão Nemo.
A ciência é maravilhosa, afirma Verne, mas ela não pode alterar aquilo que somos. Ao contrário, apenas reafirma nossas fragilidades, e temores.
Ou nos conduz a zelar por nossas virtudes e valores. Que também existem para além da ciência.
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