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O papel das criaturas invisíveis e a crítica da História iluminista.

Por Edgard Leite (Diretor do Instituto Realitas)



William Hardy McNeill (1917-2016), foi um historiador norte-americano. Na sua vasta obra existe um livro muito conhecido, de grande profundidade: Plagues and Peoples (Pestes e Povos) (1976).


Nesse livro, McNeill discutiu o papel histórico das pandemias e das doenças contagiosas. Sugeriu a tese de que essas criaturas, microorganismos, bactérias, vírus, atuam como agentes históricos. Suas ações determinam acontecimentos.


Segundo MacNeill, vários tipos de doenças infecciosas “afetaram os negócios humanos tanto nos tempos antigos quanto nos modernos”. E é necessária “uma completa compreensão, no entendimento da história, do papel dos seres humanos no equilíbrio da natureza, e ninguém pode duvidar que a ação das doenças infecciosas nesse equilíbrio foi, e permanece sendo, de essencial importância”.


A tese holística de McNeill, portanto, introduziu o tema da difícil ponderação de elementos não humanos no curso dos acontecimentos históricos. Assunto difícil hoje, numa historiografia tomada pelo antropocentrismo iluminista.


Toda a tradição historiográfica de origem bíblica, ao contrário, sempre entendeu, facilmente, a articulação entre os diversos elementos que constituem a realidade do mundo.


As epidemias, os terremotos, os meteoros, os cometas, as estrelas e planetas, sempre foram entendidos como co-participantes do drama da história. Movidos usualmente por forças e processos não totalmente conhecidos para os humanos.


Essa atitude, de humildade e estranhamento diante das coisas do mundo não parece, ao olhar iluminista, sustentável, a partir do momento em que aprofundaram a crença na possibilidade de isolar o ser humano numa redoma interpretativa.


Dentro da qual apenas o ser humano governa: o universo ficcional da utopia histórica. A utopia de uma história apenas humana.


Os vulcões, os asteróides, os terremotos, nos provam, no entanto, que a existência da utopia é isso, apenas: uma ficção, ou, literalmente, um não-lugar. O lugar do homem é no mundo.


E, embora saibamos o que é a órbita de um cometa, ou a de um asteroide, jamais conseguiremos conhecer todas as órbitas e prever todos os deslocamentos eventualmente perigosos desses objetos. Eles podem se chocar com o nosso planeta e alterar os rumos de nossa história.


Mesmo porque, sabemos bem, há objetos dessa natureza que vem de fora do sistema solar.


Mas dificilmente a utopia da História se sustenta diante do estudo das pandemias.

Os vírus, as bactérias e outros microorganismos são criaturas vivas. E possuem alguma forma de senciência, isto é, de capacidade de sentir. As suas ações não são apenas, eventualmente, devastadoras. Mas transformadoras das sociedades.


O tema é claro no caso da Peste Negra, cuja fase na Europa, entre 1347-1351, matou entre 45 e 50% da população. Como provam os estudos demográficos. Não podemos desconsiderar os efeitos desse evento sobre as sociedades européias.


Muita coisa mudou depois da Peste Negra. As profissões e as necessidades econômicas se alteraram. Houve crise de mão de obra. Preços aumentaram. Houve movimentações populacionais.


Mas, principalmente, a Peste gerou uma crise no espírito.


Joseph Byrne (The Black Death) menciona o fato de que, por exemplo, em Florença, morreram metade dos frades dominicanos. 40% do clero de Barcelona morreu. Na Inglaterra, quase não havia clérigos, já em 1349. A situação chegou a tal ponto que até mulheres eram autorizadas a ouvir confissões dos agonizantes. Foi a era dos movimentos flagelantes.


Judeus foram responsabilizados pela tragédia, Houve perseguições e deslocamento de populações. Mas também a Igreja foi culpada pelos acontecimentos.


O anticlericalismo recebeu um importante reforço no decorrer da pandemia. Mesmo porque ocorreu um evidente decréscimo da qualidade do clero após a crise.


As pessoas se tornaram mais religiosas, por um lado, e menos religiosas, por outro. As questões sobre a vida e a morte, o papel de Deus e dos homens no drama da história, que ali surgiram, apontaram o mundo das Reformas religiosas.


Neste, uma das grandes questões era pensar novamente o ser diante de Deus, da realidade da morte e dos prazeres do mundo e do significado de suas decisões.


Assim, parece claro que essas criaturas invisíveis, que não tem visão, audição e fala, desempenharam um papel no redesenhar da vida dos homens. Nas suas perspectivas de entendimento das coisas.


É curioso que durante a Gripe Espanhola, de 1917-1920, tenha ocorrido intensa censura sobre a pandemia. Em grande medida, se diz, porque se vivia a I Guerra, e era importante não quebrar a moral das sociedades.


E, de fato, é desafiador saber que a luta pela vida não está contida apenas na luta pelos interesses políticos, nacionais, ou imanentes, concretos. Mas envolve um desafio contínuo diante da realidade do mundo e da natureza.


Ali, em 1918, havia duas grandes guerras ocorrendo ao mesmo tempo. Numa, a dos homens, se entendia que tudo se resumia às coisas do mundo. Noutra, contra o vírus influenza H1N1, se colocava em evidência a fragilidade da existência nesse mundo de transitoriedades. O que eram as nações diante disso?


Prova-se, aqui, a necessária inserção dessa realidade misteriosa na consideração que podemos fazer sobre a natureza da história. Como escreveu Jacques Maritain, “a filosofia da história converge para o mistério do mundo”.


O papel, na história, das criaturas invisíveis, nos indica o caráter utópico da história iluminista. E isso nos leva para muito além da história ecológica de MacNeill.

Nos conduz para uma história que incorpora não só as decisões humanas, mas também o extraordinário da existência e o seu mistério.




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