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O poder do ressentimento


por Edgard Leite (diretor do Instituto Realitas) @edgardleiteneto


Há diversas forças que se movem contra o ser humano. E estão, muitas delas, dentro do ser.


A ideia de que os maiores inimigos dos homens são os próprios homens não é nova.


E não é nova a ideia de que esse inimigo não está nos outros, mas essencialmente dentro de cada um.


Somos nós mesmos, na nossa solidão, que recusamos a elevação da consciência. E nos tornamos perigosos. Aos outros e a nós mesmos.


Nos colocamos diante do mundo com uma perplexidade contínua, mas com um fascínio perpétuo. E não é muito difícil que as inclinações ruins dos outros reforcem as nossas próprias inclinações.


Se alguém sustenta que o objetivo da existência é, apenas, a realização de nossas vontades, é muito fácil acreditarmos nisso, porque tudo atua para que nos voltemos apenas para o mundo.


De fato, vivemos e trabalhamos nele e nossa experiência sensível se dá nele.


Um dos sentimentos mais poderosos que emerge dessa relação é o ressentimento. É um sentimento universal.


Porque a hostilidade do mundo, diante de nossas vontades, é natural e absoluta. Nada corresponde ao que queremos.


Portanto, se achamos que o que queremos é a única coisa que importa, não podemos deixar de estar ressentidos, e de forma permanente. Nada corresponderá, jamais, ao que desejamos.


Temos, de fato, pelo menos dois caminhos diante disso.


Um primeiro é aceitar tal realidade do mundo. E, assim, caminharmos dentro dele procurando vive-lo a partir de uma outra dimensão. Uma dimensão meditativa.


Ter em mente algo que está fora dele, e que nos permita aceitar suas limitações. E, principalmente, aceitar as limitações alheias.


Reconhecermos, portanto, o fato de que a realidade “é sempre mais ou menos do que nós queremos”, como escreveu Fernando Pessoa.


E, dessa maneira, encontramos uma norma que nos permite viver com tal realidade. E minimizar as dores decorrentes desse caráter hostil da vida cotidiana.


É um caminho de vivência sensível, mas moral e ética, das coisas.


Um segundo caminho é o da entrega.


Isto é, alimentarmo-nos permanentemente das dores e sofrimentos do mundo, e conduzir a vida de uma forma reativa, sempre estimulando os ressentimentos e as dores, com mais ressentimentos.


Porque não há solução, nas coisas elas mesmas, para a incompletude de nossos desejos. Pois as coisas são naturalmente transitórias.


O primeiro caminho pode engendrar uma espiral contínua de perdão e ternura. O segundo, só gera ódio, vingança e desentendimento.


A história mostra, se ela pode mostrar alguma coisa, que manipular o ressentimento é muito fácil para quem quer ter poderes neste mundo.


Porque o ressentimento é, diríamos assim, um dos motores possíveis da existência. Os ressentimentos alheios nos estimulam, por exemplo, a sermos ainda mais ressentidos, e a rede de sofrimento não tem fim.


Se se organiza isso politicamente, pode se obter uma energia consistente para a ação.


Pois todos tem motivos para se ressentir das coisas do mundo: da sociedade, das pessoas que conheceram, dos seus pais, dos namorados e namoradas, dos seus conhecidos, de experiências diversas. E assim por diante.


Temos ressentimentos até de objetos inanimados. Pois há quem xingue até as pedras.


E se alguém é capaz de convencer a outros que a fonte dessas dores não está no mundo em si, na natureza das coisas, mas sim numa “classe dominante”, numa “raça” qualquer, numa circunstância da existência, nos pais, nos padres, nos pastores, na polícia, todos os ressentimentos se dirigem para aquele foco com violência.


O desejo de vingança passa a moldar a consciência e determinar seu futuro.


Algum observador calmo, que observa o mundo como ele é, e que o vive de forma sensível e moral, pode dizer, no entanto, com tranquilidade:


“Não adianta. O ressentimento nunca passará. Não há vingança que corrija a natureza do mundo. Esses alvos, se existirem, pois muitos sequer existem, não são os promotores das dores. São, ao contrário, eles mesmos, produtos da realidade do mundo. Se forem mortos ou eliminados, o mundo que os gerou continuará existindo”.


Nunca existirá uma sociedade sem frustrações e, portanto, sem ressentimentos.


Há, certamente, um alvo a ser considerado. Mas, ao contrário do que dizem os promotores da raiva, não é alguém ou algo neste mundo. Mas a nossa atitude diante dele. Que é de onde provém nossos ressentimentos. É a nossa entrega apaixonada aos nossos desejos.


E, de fato, existem pessoas que seguem o primeiro caminho: o do observador calmo. O da contemplação. Ou o do sensibilidade equilibrada e serena. É senhor de seus desejos, não escravo deles.


Pela ternura e perdão, em todos os lugares e tempos, podem pessoas ricas e pobres, de um tipo ou de outro, pais e filhos, homens e mulheres, se encontrar, na crença em valores maiores. Em algo que transcende a transitoriedade das coisas.


Esse encontro é um encontro sensível, no âmbito da fragilidade humana. Reconhecer esse caráter efêmero do mundo, em nós, e no outro, permite, sim, a superação do ressentimento. Que é, apenas, um veneno.


Muitas coisas perturbam nossa inteligência afetiva. Uma delas é a cultura do ressentimento. Tão normal, e tão interna.


Mas outras tantas coisas podem resgatar nossa inteligência: o amor, a ternura, o perdão.


Cujos fundamentos não estão nesse mundo sempre transitório. Mas em uma outra realidade, superior, que está além do mundo.


E que, ao contrário das realidades deste mundo, sempre nos satisfazem e nos convidam, permanentemente, à serenidade e aceitação.



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