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O que pode servir como lastro de valor em nosso tempo? (I)



Edgard Leite Ferreira Neto


A percepção de que, neste mundo, tudo acaba ou se desagrega é alcançada na experiência de uma vida e também decorre de reflexões históricas acumuladas pela experiência. De fato, todo o universo está em permanente transformação.


No entanto, o entendimento empírico de que há fenômenos, na natureza, que parecem sobreviver às transformações (ao menos em nossa existência individual e temporal) e que, mesmo quando se transformam, continuam a ser o que são, também se desenvolve ao longo da existência e da história. Tal entendimento é o que surge da observação de certos metais, por isso mesmo ditos preciosos, como a prata e, acima de tudo, o ouro.

Desde o momento em que travou contato com o ouro, e pôde compará-lo com outros elementos, o Homem se deu conta de que ele é raro, belo, não oxida e nem se decompõe. De alguma forma, assim normalmente se entendeu, ele aproxima o ser humano à uma eternidade que aqui não existe.


Foi num bezerro de ouro que os hebreus preencheram o vazio decorrente da prolongada ausência de Moisés e controlaram o temor de que não havia Deus. Era na busca da pedra filosofal que, tendo em mente o ouro, os alquimistas atuavam no sentido de alcançar a essência ou a vida eterna. Todo aquilo que traduz o eterno ou é sagrado evoca ou é fabricado ou ornado de ouro.

Mas, principalmente, em todas as culturas que desenvolveram e adotaram a concepção de moeda, isto é, de uma unidade universalmente reconhecida de valor que serve como instrumento de troca, o ouro foi matéria prima principal. Se tudo que se usa e consome é degenerado pelo tempo, o ouro amoedado, como mercadoria, não parece sê-lo.


Moedas históricas, de ouro, como o solidus de Constantino (272-337 d.C.) (acima), circularam por séculos, sendo compradas e utilizadas com segurança e estabilidade. O ouro e os metais preciosos sempre foram entendidos, portanto, como lastros de valor num mundo onde os valores das mercadorias mudam permanentemente.


As vertigens iluministas, que se desenvolveram de forma constante e crescente ao longo dos séculos XVIII e XIX, se voltaram, como se sabe, de forma apaixonada, para o mundo. Esbarraram, portanto, inquietas, diante da realidade do dinheiro e de sua razão.


Se se quer viver o mundo plenamente, considerando-o exclusivamente a partir da experiência de coisas materiais, é necessário ter e usar plenamente o dinheiro. Foi exatamente por isso, aliás, que, ao longo dos séculos, a moeda foi entendida como moralmente perigosa. Acima de tudo pela capacidade do dinheiro de comprar infinitos prazeres e implodir a moral, na realização de todas as vontades.


E exatamente por tal razão a administração do dinheiro ganhou uma importância gigantesca no processo de secularização dos Estados, após as revoluções do século XVIII. Principalmente porque o papel dos novos regimes não era mais o de propiciar a salvação das almas, mas sim o de garantir direitos das pessoas no mundo, ou permitir que diferentes desejos pudessem ser satisfeitos. Ou, melhor, o de sustentar a ilusão da eternidade dos instantes. E nisso o dinheiro sempre foi muito útil.


Um possível perfil metafísico do dinheiro, mais especialmente do ouro, incomodou, evidentemente, o pensamento iluminista. A ideia da abolição de fundamentos metafísicos para a moeda circulou amplamente entre os revolucionários do século XIX.


Robert Owen (1771-1858), por exemplo, tentou implantar horas trabalhadas como referencial de valor, mas o trabalho logo se mostrou impossível de ser quantificado. Pois nele atuam muitas subjetividades e ritmos e é absolutamente transitório, como tudo que faz o homem. A sua compra não possui, portanto, objetividade suficiente para a consolidação de um sistema monetário.


Mas o abandono de uma metafísica transcendental, que ponderava sobre causas imateriais, em prol de uma metafísica crítica, que acreditava na razão, foi um dos elementos intelectuais que permitiu elevar o ouro a um papel central na estabilidade monetária européia no final do século XIX. Não foi a sua beleza e mistério, mas sim a sua singular estabilidade química que permitiu sua sobrevivência numa era de grandes transgressões: a Belle Époque. O referencial natural sustentou a artificialidade do mundo e seus devaneios.


O padrão-ouro, que se generalizou a partir de 1870 pelo planeta, tinha grandes vantagens ao atrelar diferentes utopias ao mundo real, ao sólido ouro, porque mantinha os delírios sob controle. A quantidade do meio circulante estava atrelada às reservas em ouro que um país possuía. Isso, além de atuar na construção da estabilidade monetária, permitia, a todos que pensavam sobre o assunto, consolidar entendimento e domínio sobre a racionalidade do dinheiro. E a gerir vidas que tinham em vista os limites naturais da riqueza, ancorando-as em uma reserva não controlável pelos governos: o ouro.


Esse caráter, diríamos democrático (e também conservador), do padrão-ouro não se estendeu perfeitamente a economias periféricas, mas teve um efeito sobre toda a economia global, ao consolidar o ouro como meio de controle monetário e reserva de valor de reconhecimento universal. O ouro acabou por descartar a prata ou modelos bimetálicos em função da evidente racionalidade histórica que o envolvia.


Mas não é totalmente certo que o padrão-ouro, que fortaleceu acima de tudo a Grã-Bretanha, tenha sido bem sucedido em gerar uma sociedade estável. Embora fosse essa a intenção. Sempre foi evidente uma conspiração contínua contra a estabilidade monetária. A característica básica dessa busca pela segurança na circulação do dinheiro era a de tentar atrelar o Homem a limites, mostrando-os. A resistência a esse movimento de sabedoria proliferou o tempo inteiro sob o padrão-ouro. E o maior sinal da intensa reação, de raízes iluministas, a essa dita camisa de força do natural está no desenvolvimento nada estável dos projetos nacionais que entraram em confronto, de forma catastrófica, em 1914, com a I Guerra Mundial.


Chamamos a atenção, anteriormente, que o período de guerras que se inicia em 1914 e termina em 1945 é uma obra-prima iluminista. Nele está presente toda a prepotência intelectual que defende a ausência de limites para a ação humana no mundo, que proclama a inexistência de princípios e valores metafísicos transcendentais para o exercício da política e que os recusa especialmente no caso do desenvolvimento científico.


No que diz respeito à moeda, é significativo que o primeiro movimento que acompanha a guerra foi a suspensão da relação de harmonia entre o meio circulante e as reservas de ouro. Aquele conflito não podia se desenrolar, evidentemente, no quadro da responsabilidade do padrão-ouro. O que significa que a crise do ouro foi, portanto, uma crise de natureza moral. O império da moeda fiduciária começou a se consolidar exatamente a partir da barbárie, ou como pré-requisito necessário para o desenvolvimento do caos.


Após o armistício, 1918, houve uma tentativa de resgatar o padrão-ouro, na conferência de Genova, em 1922. mas a instabilidade financeira do pós I Guerra e os contínuos ataques especulativos da época, principalmente contra o Banco da Inglaterra, fez com o que sistema fosse novamente interrompido em 1931. A gigantesca destruição que se abateu sobre o mundo no período de 1939-1945 só poderia ser realizada, portanto, graças ao controle total do dinheiro pelo Estado e no decorrer do esmagamento de qualquer vínculo entre a emissão de moeda e uma reserva de valor que pudesse ser, de alguma forma, socialmente controlada.


Houve uma tentativa de rearticular o padrão-ouro, a partir do acordo de Breton Woods, em 1948, dessa vez estabelecendo a conversibilidade do dólar ao metal. Mas essa tentativa não resistiu aos anos 60, ao estado de bem-estar social, à Guerra do Vietnã e a uma ampliação, até então não conhecida, dos direitos e dos prazeres. A uma nova crise moral. O Presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (1913-1994), no dia 15 de agosto de 1971 decretou o fim da paridade dólar-ouro, consolidando o movimento iniciado em 1914.


A importância dessa decisão para a construção de uma nova ordem monetária internacional é imensa. Observemos que logo a seguir, 23 de setembro, os EUA propuseram que a República Popular da China substituísse Taiwan no Conselho de Segurança e a 12 de fevereiro de 1972 Nixon fez sua icônica e fundadora viagem à Pequim.


A partir daquele momento a moeda fiduciária se consolidou e, com ela, estabeleceu-se a submissão das políticas monetárias às vontades dos Estados e dos bancos, propiciando uma imensa capacidade de investimentos internos e internacionais sem qualquer freio que não as vontades dos bancos centrais e dos políticos. Desenvolveram-se livremente as mais diferentes políticas demagógicas com todas suas inflações e hiperinflações, fundamentadas na incrível ideia de que todos devem ter acesso ao dinheiro e viver exteriorizando os seus desejos no mundo através dele.


A tentativa de redução do ouro a mera commodity passou a gerar explicações canônicas na historiografia econômica. Diz-se, por exemplo, que “o ouro tem preço volátil e não pode ser controlado pelas instituições monetárias”, ou “a âncora do ouro não é flexível o suficiente para garantir as necessidades dos governos modernos dotados de maiores poderes discricionários e maiores responsabilidades em um meio internacional econômico e financeiro complexo”. Mas, principalmente, a partir de 1922 fez-se a pergunta: como expandir a base monetária mantendo o ouro como padrão se este é determinado não pelos bancos centrais, mas "pela geologia e pelo custo de extração”(1)?


A lógica do mundo contemporâneo volta-se, de fato, contra qualquer sinal de limitação do desejo humano, principalmente quando isso vem da natureza. A ideia de que a moeda pode ser controlada totalmente pelo ser humano exige, evidentemente, a negação do senso comum ou a concentração de decisões naqueles que se consideram libertos da natureza e de qualquer limite. Pois esse é o padrão do Iluminismo: fenômeno intelectual e não social, crença na capacidade humana de tudo poder.


Mas foi o ouro de fato transformado em mera commodity? Compreende-se que a conspiração da Belle Époque continue em movimento: ainda se considera preciso lutar contra a ideia de que há valores eternos, pois isso certamente remete à religião, contrária às políticas seculares. Também é consequente pensar que, nesse sentido, a própria ideia de uma reserva de valor parece ser um obstáculo às políticas vertiginosas de liberdade da moeda fiduciária, que atende apenas às experiências e movimentos do momento e a pautas políticas descompromissadas com concepções históricas sobre a natureza do valor. Pautas cujo desenvolvimento exige privar a todos da capacidade de fortalecer-se diante do Estado.


Os milhões de libras esterlinas cunhadas durante o século XIX e XX foram forçosamente reduzidas a curiosidades numismáticas (como o solidus de Constantino), ou transformadas em jóias. No entanto, no decorrer das sucessivas crises monetárias dos últimos cinquenta anos, a tendência dos principais bancos centrais é não de diminuir, mas sim de aumentar, lentamente, suas reservas em ouro. Com a particularidade de que isso de forma alguma significa que a sociedade seja, como na época do padrão-ouro, convidada a participar da gestão dessa riqueza. Mas por quanto tempo essas compras podem ser feitas de forma reservada e o ouro pode ser contido?


Mas o fato é que, por enquanto, ele o é. Por isso as criptomoedas emergiram no cenário financeiro, como sustenta Saifedean Ammous, como uma tentativa de encontrar uma reserva de valor que esteja relativamente alheia ao controle do Estado e sob a administração de uma sociedade interessada que possa, portanto, usá-las em seu próprio benefício (2), e de forma independente das políticas dos governos. Como funcionou com o ouro. Será possível? Isso nos cabe investigar a seguir.




1) SCHENK, Catherine R. “The global market and the international monetary system”in BOTT, Sandra: The global gold market and the international monetary system. Palgrave-Macmillan, 2013 pp.22, 28, 36.

2) AMMOUS, Saifedean: The Bitcoin Standard: The decentralized alternative to Central Banking. New Jersey, Wiley, 2018.

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