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A solução da dor da história (II): a prospecção do futuro.


Edgard Leite Ferreira Neto


Um primeiro movimento para resolver o sofrimento da história é o da prospecção do futuro. Tal sondagem foi, até a modernidade, uma experiência de natureza fantástica. Isto é, desenvolveu-se a partir de mecanismos de diálogo entre o visível e o invisível. Estando no invisível a eternidade, a partir dele seriam perceptíveis os processos transitórios do visível como um todo: seus princípios, meios e fins. A articulação intelectual imperfeita entre o espiritual e o material configura uma sensação de estranheza, que caracteriza o fantástico.


Sempre foi comum a ideia de que o conhecimento matemático dos movimentos dos astros poderia permitir o acesso à regularidades ou complexidades eternas recorrentes, a partir das quais se extrairia alguma previsão sobre as coisas daqui. Começando com a correta época do plantio e o da colheita, e englobando tudo aquilo que se associa a esses processos vitais, como os caminhos da existência humana. A presença de uma astronomia pré-histórica é atestável na cultura megalítica do neolítico.


Se se tem uma visão da subordinação de nosso mundo àquele, (evidente, pois não temos poder sobre os movimentos dos astros e estes determinam a possibilidade de nossa agricultura, por exemplo), parece igualmente claro que não apenas esses movimentos influenciavam ou determinavam fenômenos físicos mas também espirituais. A lógica do destino cósmico era aplicável ao funcionamento natural do mundo e ao desenvolvimento das vidas, inseridas, como estão, nesse universo de sentidos.


Por isso Virgílio (70 a.C- 19 a.C.), nas Éclogas, fala sobre o banal movimento de levar a pastar um rebanho mas que adquire significado específico, emocional, espiritual, quando se o faz “sob câncer [isto é sob a influência da constelação de câncer]” (Éclogas,X: 68). Existem eflúvios, movimentos que emanam dos astros, que estabelecem um estado de espírito neste mundo, e configuram uma realidade dada e um futuro, com o qual se deve estabelecer uma sinergia.


Não apenas os planetas se deslocavam de forma previsível, mas a trama das relações entre eles permitia a previsibilidade dos rumos dos eventos na terra, portanto. A astrologia foi sempre um dos mais elaborados procedimentos para se aproximar à natureza do presente e à realidade do futuro. Quando mais nos aproximamos da era de Nicolau Copérnico (1473-1543), ou da autonomia da matemática e da emergência da astronomia como ciência objetiva, mais a preocupação com a astrologia se ampliava. E não podemos deixar de refletir se o movimento que começa em Copérnico não é, acima de tudo, um específico aperfeiçoamento do sentido perscrutador da astrologia.


Há uma profusão de astrólogos no século XV coletando números e tentado estabelecer sentidos através deles. Toda essa preocupação está na raiz do grande volume de informações astronômicas disponível na época de Copérnico e Brahe, e que estabeleceu as bases de ruptura acadêmica com a astrologia. Mas isso não significa que essa tentativa astrológica de descobrir os caminhos do futuro não tenha continuado em movimento, apesar da nova ciência astronômica.


Um exemplo particularmente importante nesse sentido é a obra de Michel de Nostredame ou Nostradamus (1503-1566), provavelmente o mais conhecido dos videntes da modernidade. Foi contemporâneo de Copérnico. No entanto foi muito mais conhecido e idolatrado do que ele, mesmo pelos séculos que seguiram, Nostradamus escreveu muitas páginas sobre acontecimentos do futuro nas suas Centúrias. Seu método era, de uma parte, baseado na astrologia, que é, como vimos, uma maneira de tentar resolver, através de uma matemática submissa à espiritualidade, as dúvidas sobre o que virá e, de outra parte, sustentado por visões, que surgiam para ele de uma maneira clássica, grega e romana, na superfície de uma bacia de água, a partir da utilização de formulas mágicas.


Numa avaliação geral de suas Profecias, percebe-se que muito do que calculou ou viu foram acontecimentos trágicos: guerras, epidemias, massacres, cataclismas diversos. Por que? Talvez porque a realidade dissolve permanentemente nossos desejos. Devia estar correto Nostradamus ao ver, principalmente, acontecimentos terríveis. Porque a realidade assim o é, diante dos delírios humanos. Nostradamus deixa claro, igualmente, que só podemos descobrir o significado de suas profecias depois que elas acontecem. Faz sentido.


Os movimentos históricos que vivenciamos, estranhamente, não podem ser compreendidos totalmente até se realizarem, ou encerrarem uma dada trajetória sistêmica. O que torna, precisamente, nossa vivência da história recheada de angústia. A narrativa do desfecho de acontecimentos futuros está ligada a uma trama de acontecimentos que desconhecemos. Poucas tramas são perceptíveis, e o que parece às vezes um desfecho muitas vezes não o é. Por exemplo, o armistício de 1918, o fim da I Guerra Mundial, na verdade não era desfecho, mas apenas um momento em um processo maior de destruição. A II Guerra Mundial foi um desfecho. Mas terá sido realmente?


As visões sobre o futuro evidenciam a nossa dificuldade de controle sobre as coisas. Porque colocam em cena, claramente, que as dúvidas no presente repousam sobre um sentido que é o da realização da essência de um fenômeno e, diante deste, a nossa consciência está indefesa, pois compartilha da essência do processo. Está dentro dele e não no seu exterior. O que podemos, de fato, ver?


As profecias podem dizer o que vai acontecer. Mas resolvem as nossas angústias? A seguir Nostradamus não, evidentemente, porque este busca comprovar que há um destino ao qual estamos relativamente aprisionados, em um grau expressivo. Mesmo uma futura circunstância positiva é seguida de uma tragédia e os grandes marcos são as catástrofes, gigantescas experiências de desilusão.


Mas para Nostradamus era evidente que tudo isso apenas comprovava o caráter efêmero e transitório das coisas do mundo. Pois ele tinha como horizonte um futuro acontecimento "no qual os mortos sairão de suas tumbas" isto é, o momento no qual a história terá um fim. Onde todos os processos e todos os fechos encontrarão um definitivo encerramento, concluindo o movimento da história. Semelhantes prospecções astrológicas ou mágicas sobre o futuro sustentam, portanto, que a saída para a angústia da vida no tempo só pode estar, afinal, fora do tempo.


É curioso, portanto, que Virgílio, nas Éclogas, tenha sinalizado que


"o menino que está nascendo: a geração de ferro

com ele findará, ao mundo vindo a raça de ouro"

(...)

"por si, cheias de leite, as cabras voltarão ao aprisco,

e os rebanhos não mais terão pavor dos grandes leões.

Teu próprio leito cobrir-te-á de cariciosas flores;

morrerá serpente, e a planta de falaz veneno

morrerá: e aqui e ali hei de crescer o amomo assírio" (Éclogas, IV, 9-20)


O futuro, para Virgílio, cujo pensamento era imerso em tantos sentidos astrológicos, só terá um desfecho em um acontecimento messiânico que porá fim aos medos, (o "pavor") e a toda fonte de sofrimento ("morrerá serpente"). O desfecho definitivo, sugerem Virgílio e Nostradamus, eliminará a própria história.


(Continua)



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