por Edgard Leite, Diretor do Instituo Realitas, Presidente da Academia Brasileira de Filosofia
Uma pandemia de peste bubônica devastou a Europa entre 1347-1351. Sua gravidade deixou marcas duradouras na memória e na história.
Estima-se que entre 45 a 50% da população européia morreu nesses cinco anos, numa taxa de mortalidade nunca igualada por outras pandemias documentadas, inclusive de peste.
Quem foi o responsável por aquela tragédia?
Certos tipos de acontecimentos, cuja origem escapa ao conhecimento humano, são particularmente inquietantes e despertam a imaginação dos homens.
E, algumas vezes, ecoam na política de forma patética.
Na época, muitos foram unânimes em apontar os judeus como responsáveis por tudo aquilo. Eram, eles, assim afirmaram alguns, os principais interessados na morte dos cristãos. E é provável, acreditavam, que estivessem disseminando a doença, intencionalmente.
E, indiretamente, talvez tudo aquilo fosse uma punição divina aos cristãos que não foram suficientemente contrários aos israelitas.
Outros, no entanto, culpavam a Igreja por esses males. Entendiam que os pecados dos sacerdotes atraíram sobre eles e os demais cristãos muita dor e sofrimento. Inclusive a peste.
De fato, como já explicamos em outro artigo, em Florença, por exemplo, morreu metade dos frades dominicanos. 40% do clero de Barcelona sucumbiu. Na Inglaterra, quase não havia clérigos, já em 1349.
A pandemia passou, mas a dúvida sobre aquele acontecimento permaneceu.
A questão continuou no limbo por muitos séculos, até alguém afirmar que o problema eram as condições de higiene, que podem favorecer o desenvolvimento dos vetores da doença. Ou seja: os ratos e as suas pulgas (xenopsylla cheopis), que transmitiam uma bactéria, yersinia pestis, entre os roedores e o ser humano.
Tal solução pode parecer ter dissipado a grande disputa política da Europa medieval sobre a origem das pandemias.
Mas não resolveu o problema da responsabilidade, porque sempre se pode acusar o Rei, o Presidente, o gestor da saúde pública, o lixeiro ou o dono da casa pelas condições de higiene de um país, de uma cidade, de uma rua ou de um quintal. Os homens seguiam sendo os responsáveis.
Em 1976, no entanto, William Hardy McNeill (1917-2016) publicou um livro muito interessante, sobre o assunto, chamado Plagues and Peoples (Pestes e Povos).
Neste livro, MacNeill argumentou que, na verdade, os seres humanos não são, em absoluto, totais senhores de sua história. Eles estão inseridos na natureza.
Tal observação pode parecer óbvia, mas nem sempre o é. Principalmente a pessoas que vivem em um mundo que busca afastar-se da natureza, ou que tem como objetivo controlá-la.
As bactérias, os vírus e outros agentes infecciosos, sempre desempenham um papel histórico relevante, alterando o curso dos acontecimentos. São tipos de atores históricos.
Entre eles há alguns que são inimigos e predadores. A ação destes sempre se fez de forma misteriosa, pois embora desprovidos de sentidos são, no entanto, dotados de alguma forma de percepção das coisas.
Conseguem encontrar os caminhos para nossa circulação sanguínea, onde podem se alimentar e se reproduzir.
Assim, embora existam guerras entre os seres humanos, também há guerra entre os seres humanos e os seus predadores invisíveis.
Da mesma forma como os humanos buscam sempre os melhores caminhos para atingir seus adversários, esses predadores também agem assim, e com muita eficácia. Pois são invisíveis.
E é comum que quando essas guerras ocorrem, e ocorrem com frequência, os seres humanos passem a brigar entre si. Não porque os agentes invisíveis assim o desejem, embora isso os ajude muito.
Mas principalmente isso ocorre porque esse combate mostra aos seres humanos que eles não controlam o mundo. Estão sujeitos ao extraordinário. E é difícil aceitar que estamos à mercê do imprevisível, ou impotentes diante de um adversário que desprezamos.
Quando somos tão controladores e tão seguros de nós mesmos.
Alguém, conhecedor da história, ainda pode argumentar, por último: mas não foram os chineses que plantaram a peste no extremo oriente, para dizimar toda a humanidade?
De fato, foi lá que a peste negra começou, e pelas rotas de comercio atingiu o mediterrâneo.
Mas mesmo que fosse essa uma verdade, não o seria de todo.
Num livro menor, mas muito conhecido, e que virou filme, do escritor Michel Crichton, chamado Jurassic Park, Parque dos Dinossauros, conta-se uma parábola sobre um grupo de cientistas que pretendem, geneticamente, recriar animais pré-históricos.
Acreditam, eles, que poderão manter essas criaturas sob controle, pela manipulação genética.
Evidentemente, adverte desde o início um personagem, não será assim. Não apenas porque alguns cientistas acham que podem ser algo maior que o mundo, coisa que, definitivamente, não são. Mas essencialmente porque, ao lidar com a vida, a ciência lida com algo que é incontrolável.
A vida é incontrolável porque aquilo que a sustenta é uma fonte continua de energia. Está além da matemática.
A vida, na verdade, busca realizar o que é: a vida. Que exige alimentação, reprodução, crescimento e transformação. E morte.
Nem judeus, nem a Igreja, nem chineses, nem os ratos, nem as pulgas, nem os reis. Todos esses lutam pela existência. O responsável pela Peste Negra é a vida, incontrolável como é, e que contém em si essa verdade misteriosa da fim.
Aceitar essa realidade é muito difícil. Pois implica em aceitar a limitação de nossa existência, nossa fragilidade, nossa perplexidade diante da vida, que nenhuma ciência pode debelar.
Mas é aceitado isso que nos tornamos humanos. E podemos ser aquilo que realmente somos: seres transitórios que repousam sobre o mistério do mundo.
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