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Um mundo sem limites?


Edgard Leite Ferreira Neto


Qual o problema, hoje, do mundo? Vaidades excessivas? Bem, sempre houve excessos de vaidades. Egoísmos, maldades, cegueiras, vícios? Não se pode dizer que houve algum tempo em que essas coisas não existissem. Pobreza material? Sempre houve pobreza e, para ser sincero, a pobreza no passado parece muito maior da que hoje existe. Já houve épocas em que, no Brasil, circulavam moedas de prata. O que significa que o meio circulante era pequeno e restrito. Nada comparável ao que hoje é. Pobreza de espírito? Bem, de novo, isso é algo que nunca faltou.


Há muitos problemas. Mas podemos destacar alguns, no âmbito da moral.


O primeiro é a crescente ausência de limites legais ao exercício dos desejos. Esses limites foram sendo sistematicamente suprimidos, nos últimos duzentos anos. Muitos obstáculos que deveriam ser observados antes e durante o desejar deixaram de existir. O adultério, por exemplo, no Brasil, deixou de ser crime em 2015. Aparentemente, não interessa mais à sociedade se o marido ou a esposa traem um ao outro. A defesa da família passou para a esfera privada.


Os limites morais, no privado, no entanto, também foram flexibilizados. Pode-se trair porque passou a ser aceitável priorizar os desejos. Os desejos de quem trai, evidentemente. Há toda uma nova moral, subjetivista e relativista, individualista, difundida pelos mais diferentes meios, da televisão aos consultórios de psicanálise, que sustenta a possibilidade e, eventualmente, a necessidade, de buscar alguma satisfação fora de um relacionamento insatisfatório. E os critérios para identificar a insatisfação também passaram a estar ligados à satisfação dos desejos. O amor deixou de ser um dado relevante.


Essa defesa da ausência de limites singulariza os dias que correm. Alguém pode argumentar: “mas sempre se traiu”, e é verdade. Mas sempre se traiu entendendo que a lei proibia e que era errado trair. É bem diferente, do ponto de vista da consciência. Admitia-se um limite e tomava-se a decisão consciente de ultrapassá-lo. A lei, hoje, nega ao ser a possibilidade de decidir sobre o assunto. Uma coisa é assumir a responsabilidade por uma decisão, outra a de ser absolutamente irresponsável diante dos próprios atos. A sociedade não estabelece mais uma orientação jurídica em tal sentido: sustenta a irresponsabilidade.


Observemos que os efeitos dessa leniência sobre outras questões da vida são significativas: se posso trair um cônjuge porque devo ser leal a meu amigo? Se não devo nada ao meu parceiro, o que deverei ao meu amigo? Assim como o casamento se esvai, se esvaem, também, as amizades. O fim dos limites aos desejos compromete a estabilidade de todas as relações e coloca a satisfação individual como principal referencial de conduta.


O segundo problema é, portanto, aquele que diz respeito aos princípios que devem nortear a relação com os desejos. Nisso as tradições orientais e a tradição bíblica convergem na questão: para Buddha não se deve desejar por causa do sofrimento que isso causa, para Jesus, não se deve desejar aquilo que Deus proibiu de ser desejado. Essas crenças buscam estabelecer horizontes para os fundamentos éticos e morais do exercício da liberdade, pois as decisões também devem levar em consideração os nossos desejos.


Assim, chegamos a um outro problema, ainda mais sério e profundo. É, como já apontamos antes, o fato de que as políticas de Estado têm, nos últimos duzentos anos, de forma sistemática, atuado para dissolver tanto as leis controladoras dos desejos quanto também a crença na existência de limites éticos e morais à sua expressão. O Estado pretende garantir a liberdade de desejar.


Num texto que escrevemos, há alguns anos, chamamos a atenção para o fato de que tal política de leniência moral não contribuiu para diminuir, por exemplo, a violência doméstica. Pelo contrário. Em grande parte porque a liberdade dos desejos é a liberação de muitos desejos, não apenas o da traição. Entre estes, inumeráveis perversões que sempre foram controladas pela lei, e também pela moral introjetada, de forma sagrada, na consciência. E são desejos tão graves quanto o adultério: por exemplo, mentir, roubar, ferir e matar.


Podemos liberar o adultério e, ao mesmo tempo, controlar a violência doméstica? Uma lei pode permitir uma coisa e proibir a outra. Mas como pode a pessoa distinguir entre a liberdade da autossatisfação apenas numa e não noutra direção? Como exigir que uma pessoa seja capaz de escolher entre o adultério e o desejo de agredir, se a sociedade lhe diz que pode nortear a vida por suas vontades? Alguém pode dizer: mas um adultério não é semelhante a um abuso físico ou moral. Mas não é o adultério um tipo de abuso? Como estabelecer a gradação dos abusos?


A verdade é que o tema do adultério diz respeito à família, o do abuso, ao do indivíduo. No primeiro caso, nenhuma instituição coletiva pode sobreviver à livre expansão das vontades de suas partes: a liberdade para trair é a falência da família. No segundo, entende-se que o indivíduo deve ser preservado diante de qualquer reação que porventura exista à sua necessidade de ser o que deseja ser. Isso instala uma instabilidade nas relações sociais: posso trair quem eu quiser, devo ser leal apenas a mim mesmo. Que relação podemos ter com o outro?


Valores maiores, pelos quais curvamo-nos não diante de nós mesmos mas sim de Deus e dos outros, sempre foram tidos como os mais importantes princípios organizadores da consciência. Negá-los é arriscar o caos das paixões humanas, ou considerarmos a nós mesmos como superiores a Deus e ao próximo. Não por acaso, nos últimos duzentos anos tivemos guerras infinitas e violências indescritíveis. Liberto da proibição moral de colocar o desejo como causa suficiente das ações, estaria o Homem apto a cometer todo tipo de traição? Ou toda atrocidade possível?


A insistência do Estado em atacar os princípios transcendentes da ética e descriminalizar os desvios morais contribui decisivamente para a desarticulação da família e da sociedade. E, com isso, abre-se a caixa de Pandora das maldades humanas. Esse projeto é, acima de tudo, um projeto de destruição.


O problema, em tudo isso, é que há naturalidade e universalidade nesses princípios éticos e morais, intensamente combatidos. O Homem os busca, para se realizar como humano e recusar ser um bicho. O império dos desejos é redução a animal. Um mundo sem limites gera uma reação contínua no sentido de restabelece-los. O ser se move, portanto, para impedir a desagregação daquilo que o identifica, sua integridade, para salvar a si mesmo de si mesmo.


A desgraça da liberação irresponsável dos desejos exige o esforço para sua contencão. E tal conflito é um conflito virtuoso. Ele já existe, naturalmente, no Homem. Mas nos nossos dias, como vemos na história, apenas passa a adquirir uma dimensão política maior, porque passa a ser movimento de preservação da própria humanidade.


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