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Uma história das decisões



Edgard Leite (diretor do Instituto Realitas) @edgardleiteneto


Os historiadores contemporâneos entendem que os seres humanos não são livres. Mas atados a redes. Redes de poder, principalmente.


“Os homens nascem livres”, escreveu Rosseau, “mas em todas as partes se encontram acorrentados”.


Presos nessas relações de poder, explicam-se os homens pelas relações entre redes, entre classes, castas, estamentos, ou o que seja. As decisões individuais não são decisões, mas apenas ilusões dentro das redes.


Tal concepção desqualifica a intimidade do ser ao não reconhecer sua potência em elevar-se, diante de qualquer situação no mundo, ou na história. Entende que o deslocamento dos seres humanos ao longo do tempo é apenas opressão e resistência coletiva à opressão, um conflito interminável.


Pois nunca há, de fato, em tal visão das coisas, liberdade. Nunca há indivíduos capazes de tomar decisões livres. Pois só há correntes. E se há correntes, mesmo resistentes a outras correntes, sempre haverá opressão. Pois o que justifica as correntes são os interesses no mundo.


Mas é assim mesmo?


O tema da liberdade do ser é muito antigo. Santo Agostinho entendia que era uma questão essencial. Pois era da liberdade humana, que decorre da particular consciência que tem os humanos, que provinha tanto o bem quanto o mal. Isto é, a realidade da vida vivida.


E o que distinguia o ser humano do animal era essa particularidade. Se não tivéssemos a condição de sermos livres, permanentemente livres, seríamos como os animais.


Em torno de Darwin pode-se gerar a ilusão de que somos, apenas, animais. E o somos, em alguma dimensão, pois nos voltamos para o mundo, com freqüência e paixão. Como os animais o fazem.


Mas há algo que nos distingue deles, e que torna a nossa existência uma existência especial, única. As formigas podem construir um formigueiro, mas os humanos constroem cidades inteiras, as destroem e as reconstroem. Não apenas de terra, mas de metal e concreto e asfalto. Certo que isto tudo é terra, dirão alguns, mas é terra pensada.


A consciência dos animais pode ser domesticada. Sabem que vivem? Não dá para perceber ao certo. A consciência dos homens, no entanto, não pode ser domesticada. Um escravo sempre guardará, no interior da mente, a capacidade de pensar livremente. Sabe que vive.


Por isso todas as redes são sempre quebradas. Nenhum elo coletivo pode submeter as consciências. Para o bem ou para mal. A liberdade humana o caracteriza como ser. A capacidade de decidir é o âmago da sua existência.


A história pode ser entendida sim, como uma história das redes. Mas não nos aproximamos do ser no tempo, isto é, da história, se não fazemos uma história das decisões.


Entender o caráter anárquico ou positivo das decisões, seu perfil surpreendente, benéfico ou maléfico, o entrechoques delas, a sua rebelião contínua contra as redes de poder, quando buscam anulá-las, é essencial para se aproximar ao mistério da história.


Jacques Maritain disse que a história era algo a ser contemplado. E, de fato, ela é misteriosa, exatamente por serem misteriosos os homens. Contemplar a história é contemplar nossa própria realidade interior.


E o império da razão, que caracteriza o pensamento do ser, sempre impulsiona o homem ao bem. À agregação. À liberdade. Porque é mal estar submetido às redes, que sempre querem destroçar o humano. É mal curvar-se ao mundo, que é apenas fragmentação.


Por isso a grande rebelião humana é a rebelião pela capacidade de decidir. Não em prol do mal. Mas decidir pelo bem. Pela razão, e, principalmente, pelo espírito. Por aquilo que nos distancia do pântano do mundo.


E essa experiência é experiência individual. Porque pode realizar o ser, independentemente do mundo. É no indivíduo que está o brilho da liberdade. De optar pelo bem ou pelo mal. E, principalmente, de conduzir a sua existência, de forma surpreendente, pelo caminho da redenção.


A grandeza das decisões individuais transcende todas as estruturas de poder que podem ser construídas entre os humanos, e pode ser absolutamente íntima. Incontrolável. Essa história é maravilhosa de ser contemplada.


Os seres humanos nascem livres, e continuam livres, mesmo quando acorrentados.

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