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A imaginação deve ser submetida aos números?


Edgard Leite Ferreira Neto


Richard Hofstadter, no seu Anti-intelectualismo na América, apontou o final dos anos 50 do século passado como o ponto de partida de um grande projeto midiático e educacional. Seu objetivo era o de fomentar o interesse geral pela ciência e gerar quadros capazes de transformar o paradigma tecnológico da sociedade americana. A importância de Carl Sagan (1934-1996) nesse processo de transformação científica é reconhecida. Sua já agora clássica série televisiva, Cosmos (1980), foi uma das culminâncias desse movimento.


Uniram-se muitos no sentido de estimular vocações e formar quadros técnicos, profissionais e acadêmicos em diversos campos de conhecimento científico. Nas suas áreas mais centrais, gravitou em torno da então chamada “corrida espacial" entre Estados Unidos e União Soviética, mas se estendeu para muito além desta e para fora das fronteiras americanas. Os efeitos no Brasil fizeram-se sentir, principalmente, através do programa MEC-USAID, em 1966, que fortaleceu a CAPES, reestruturou as universidades e os Programas de Pós-Graduação no país, além de ter tentado refundar o ensino de matemática, esse clássico problema de nossa cultura.


Na União Soviética chamaram essa movimentação, na qual também se inseriram, de Revolução Científico-Tecnológica.


Carl Sagan foi um dos agentes dessa onda de inovação, dentro da qual ainda vivemos e da qual já experimentamos os resultados. E, provavelmente, foi um dos mais importantes. Não só pelo seu carisma, sua capacidade de reunir informações diversas e explicá-las para o público em geral, mas, principalmente, por também ter se dedicado a um tema muito específico desse projeto todo. Sagan se interessou pela configuração do perfil profissional do agente central desse movimento: o cientista.


A atual figura do cientista, como homem focado exclusivamente na sua pesquisa, e concentrado de forma absolutamente secular ou laica na construção de suas hipóteses, métodos e teses, foi consolidada a partir dos anos 60. Carl Sagan atuou numa coleção muito conhecida naqueles anos iniciais (que foi publicada no Brasil com o título de Biblioteca Científica Life) dentro da qual um dos volumes, denominado de Os Cientistas, fazia a defesa desse tipo de perfil profissional.


Como se sabe, cientistas de uma geração anterior, como Albert Einstein (1879-1955) ou Werner Heisenberg (1901-1976) por exemplo, eram aventureiros intelectuais e avançavam com frequência em temas metafísicos ou não-matemáticos. Buscavam usualmente construir nexos entre as coisas e ficavam sempre incomodados com os limites de suas pesquisas. Os cientistas que emergiam desse movimento dos anos 60 e 70 eram profissionais, focados no seu objeto, normalmente no sentido de uma especialização desprovida de nexos com outras áreas, mas eficiente na sua tese central. E plenamente satisfeitos com os limites.


Nesse movimento havia uma pauta oculta, no entanto, que não deve ser desprezada. Tratava-se da insistência, contida em todo o projeto, desde o princípio, de que essa nova classe de profissionais, cientistas comprometidos exclusivamente com a ciência, deveriam manter a religião fora das fronteiras de sua atuação intelectual e alheia ao espaço acadêmico. Limitando a imaginação ao tema de pesquisa. O assunto foi tratado por Sagan num episódio de Cosmos denominado A Harmonia do Mundo.


Ali, Sagan discute Johannes Kepler (1571-1630) astrônomo auxiliar de Tycho Brahe (1546-1601). Brahe foi, como se sabe, o último dos astrônomos a tentar mediar a tradição ptolomaica e o sistema copernicano, criando um sistema cosmológico híbrido, que, embora matematicamente incorreto, sobreviveu até o século XIX. Kepler seguiu, no início, um caminho semelhante ao de Brahe, tentando explicar o movimento dos planetas através de elementos subjetivos e espirituais, por um suposto ordenamento das órbitas a partir dos "sólidos perfeitos"de Pitágoras e Platão, supondo que isso se sobreporia à simples matemática, por ser uma espécie de epifania. Mas viu-se, afinal, forçado a aceitar aquilo que os números diziam, e abdicou de toda imaginação,


Kepler era, para Sagan, a grande metáfora dos problemas da experiência profissional científica contemporânea. Kepler viveu numa era de guerras religiosas, e essas atrapalharam de forma absoluta sua jornada científica e sua família. Sua mãe foi acusada de bruxaria e sua família pereceu na Guerra dos 30 anos. Mas, mais importante, Kepler só alcançou a verdade, segundo Sagan, quando abdicou de toda imaginação religiosa e submeteu-se por inteiro à matemática.


Sagan era de esquerda e ateu, Ele não via o projeto de expansão da ciência pelas universidades do mundo apenas como movimento de inovação necessário ao desenvolvimento das sociedades. Para ele esse processo visava constituir um núcleo influente e dominante de cientistas que, avançando pelo ceticismo, descobririam pela metemática e pela ciência todos os mistérios do mundo. A tal ponto que seria possível transformá-lo. A imaginação, portanto, deveria se submeter à ciência, e nela estar ancorada.


A crítica da religião como hostil ao pensamento científico configurou-se, portanto, como um elemento desse movimento intelectual e princípio a ser observado pelo profissional.


No entanto, a vida de Kepler, ou a de Ticho, a de Einstein, ou a de Heisenberg, não mostram os entraves colocados pela imaginação religiosa ao exercício da profissão. De fato apontam a necessidade desses cientistas em tentar, de diferentes maneira, à luz do seu tempo, encontrar um sentido das coisas que pudesse estar além dos números. Não se trata de uma questão profissional, mas humana, existencial, que converge para a prática profissional, principalmente por conta da busca do nexo entre os diferentes temas de pesquisa.


O legado da pregação de Sagan e do movimento no qual se inseriu, não parece ser a crença inabalável nos números, mas sim uma contínua desfuncionalidade profissional, cuja ponto principal está na crescente perda das conexões entre as áreas especializadas e o conjunto do processo de conhecimento científico. O sofrimento de Kepler não estava no fato da religião atrapalhar seus estudos matemáticos, mas principalmente em não conseguir fazer a síntese necessária entre o conhecimento e o nexo maior das coisas. Não lhe parecia suficiente apenas descobrir as três leis do movimento planetário. Mas queria saber como essas leis se relacionavam com outras leis e o espírito. Não sobrava-lhe religião, mas sim faltava-lhe imaginação teológica.


Setenta anos depois do início desse grande movimento de inovação científica e tecnológica, que tantas coisas maravilhosas e terríveis trouxe para o ser humano, é importante refletirmos, como Kepler, de que maneira os números podem voltar a fazer sentido no âmago de um projeto de renascimento moral e espiritual do ser. Sem o qual nos perdemos na ignorância das especializações e na aridez transitória da existência.

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