top of page

A solução da dor da história (V): a serenidade


Edgard Leite Ferreira Neto


Dizem muitos que os gregos e romanos eram crentes em uma história circular e cíclica, de matriz astrológica, e que a Bíblia sustenta, ao contrário, a tese de uma história linear. Robert Nisbet (1913-1996) argumentou, com clareza, que não é bem assim. Os antigos possuíam sim uma ideia de desenvolvimento linear e progressivo, que correspondia à observação de determinados aspectos do movimento moral das sociedades.


Observemos, por outro lado, que, sim,a perspectiva bíblica sobre a história é linear, mas defende igualmente que esta possui uma dimensão repetitiva. Linear naquele movimento pelo qual os eventos vão se sucedendo de forma única, num sentido progressivo na direção do Messias e, ainda mais, na direção do fim da história. Mas é repetitiva, porque os seres humanos, desde o momento em que passaram a viver no tempo, na história, se comportam usualmente da mesma forma, com as mesmas bondades e ternuras e os mesmos movimentos virtuosos. Mas também com os mesmos vícios, os mesmos esquecimentos, maldades e angústias. E, portanto, o Homem possui essência e natureza próprias, que o torna previsível mesmo em diferentes tempos.


O Eclesiastes fala sobre uma repetição das coisas no mundo porque há movimentos circulares, como os dos planetas e das estações, e dinâmicas previsíveis na natureza, que podemos, inclusive, calcular. E a própria Bíblia é uma lembrança contínua de que a ânsia pela eternidade é movimento contínuo em todos os momentos, bem como a rebelião contra o infinito e a paixão pela transitoriedade do mundo também o é.


No Velho Testamento se entendia essas atitudes recorrentes como próprias do humano e fruto da intenção que presidiu sua criação. Os cristãos entenderão esses atos como decorrentes do pecado original e dos movimentos de Deus para redimir a alma humana. O singular é que essa contínua inconsistência humana torna os eventos históricos análogos, embora diferentes em cada momento, dentro do plano maior que emerge da eternidade.


Santo Agostinho (130-430) viu a história como um conflito de duas comunidades: a Cidade de Deus, "que no presente decurso do tempo, vivendo da fé, faz a sua peregrinação no meio dos ímpios", e a "Cidade da Terra, na sua ânsia de domínio, que, embora os povos se lhe submetam, se torna escrava da sua própria ambição de domínio”.


O quanto, em nossa alma, predomina mais a cidade de Deus ou a terrestre é questão que a graça de Deus e a liberdade nos permite ir resolvendo no tempo. Individualmente, ao longo dos anos, coletivamente, no decorrer dos séculos.


Sem dúvida que na Cidade da Terra só há sofrimento, dor e angústia, pela própria natureza do mundo, pela sua transitoriedade e pelo movimento de deter o tempo. Na Cidade de Deus há esperança, fé e amor.


Na época de Agostinho se vivia o colapso do Império Romano, tal como fora entendido por meio milênio. Era, portanto, um período de incertezas e sofrimentos infinitos. Em 410 Roma foi saqueada pelos Visigodos. Foi um acontecimento de extrema violência e absolutamente inesperado, pois Roma permanecera imune à invasões por oitocentos anos. A tragédia dos romanos, a indescritível violência que sofreram, os cativeiros, pilhagens, torturas, estupros e assassinatos, revelaram a todos a face surpreendente e terrível da história. Nunca se pode, nela, ter segurança.


Santo Agostinho tinha clareza do sentido desse e outros semelhantes acontecimentos que ocorrem na história, e, respondendo aos romanos, que queriam saber a causa de tanta desgraça, lhe atribuía uma razão moral:


"Deveriam antes, se o avaliassem judiciosamente, atribuir os sofrimentos e durezas que os inimigos lhes infligiram à divina Providência que costuma, com guerras, purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens”.


Há, portanto, uma força, maior que os homens, que determina muitos acontecimentos na história, e sobre a qual não podemos ter domínio. E ela é, basicamente, ordenadora, purificadora, moralizadora. Mas independente disso, há uma outra questão, que diz respeito ao futuro, que é a atitude individual diante da morte.


"Muitos foram na verdade os cristãos massacrados. Muitos foram consumidos em hedionda variedade de mui­tas mortes. Isto é duro de suportar, mas é comum a todos os que foram gerados para esta vida. Uma coisa sei: nin­guém teria morrido se não existisse para morrer um dia. O fim da vida torna igual a vida longa à vida breve. A cada mortal o ameaçam mortes de todos os lados. Nos cotidianos azares desta vida, enquanto durar a incerteza acerca de qual das mor­tes surgirá, eu pergunto se não será preferível suportar uma morrendo, a ser por todas ameaçado vivendo".


Tal ataraxia diante da morte, para Agostinho, é certamente uma característica da Cidade de Deus, principalmente por conta da inserção na eternidade que caracteriza a vida do crente.


"Não deve considerar-se má a morte que uma vida virtuosa precede. Na verdade, o que torna má a morte mais não é que o que à morte se segue. Àqueles que necessariamente hão-de morrer não deve preocupar muito o que acontecerá para que morram, mas antes para onde terão de ir irre­mediavelmente depois da morte. Em que podem então prejudicar aos que viveram sem mácula as formas horríveis de morrer?”.


É olhar pra a eternidade que importa, de fato. A tragédia, o surpreendente, a morte, está sempre ao nosso redor. Mas a experiência da eternidade, a busca da santidade nesta vida, permite um descolamento de toda a ansiedade e temor diante da história. Como está escrito, aliás nos Evangelhos:


"Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; Mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (Mt 6:19-21).


A fé. A esperança e o amor unem, portanto, o Homem a algo muito amor do que essas circunstâncias e a esse mundo repetitivo: do ponto d vista da história, aponta para algo superior à história. E não há necessidade de saber o que vai acontecer neste mundo, mas sim deve-se trabalhar pela elevação da própria alma.


"Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”(João 16:33).


Aqui a solução para o terror da história está na paz que encontramos no infinito. Na vitória sobre o mundo alcançamos, nela, uma profunda serenidade.








30 visualizações0 comentário
bottom of page