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Anestesias



Edgard Leite Ferreira Neto


O fato das instituições políticas contemporâneas trabalharem para anestesiar os homens, seus corpos e suas consciências, foi, parece, primeiramente percebido, de forma analítica, pelo polêmico pensador Ivan Illich (1926-2002), em seu Nêmesis da Medicina (1975).


Tal movimento tem grande significado na vida espiritual e na história do Homem. E é entendido, pelos seus promotores, como um ato revolucionário. Não diríamos tanto. Mas temos que considerar que, desde sempre, o sofrimento foi entendido como um dos elementos integrantes da condição humana. A dor, no seu sentido mais amplo, tanto a espiritual quanto a física, foi, por isso mesmo, de forma contínua, um ponto central de meditação.


O momento culminante da tradição bíblica é a narrativa da incrível dor que o Cristo sofreu, tanto espiritual quanto corporal, durante sua paixão. Buddha reconheceu-a, a dor, como sinônimo de vida, em sua primeira nobre verdade da existência. Em ambos os casos, com resultados diversos, a meditação sobre o sofrimento é quer o ponto de partida do nirvana, quer o da salvação.


É assim, portanto, diríamos extraordinário que essa experiência do sofrimento seja encarada, pela tradição iluminista, como uma realidade a ser resolvida. Não minimizada, pois o ópio e outras substâncias anestésicas análogas sempre foram conhecidas e utilizadas para lidar com a dor. Nem tomada como ponto de partida ou fundamento para uma elevação espiritual, pois, como sabemos bem, o objetivo do Iluminismo é o mundo, acima de tudo. A experiência do sofrimento é tida como uma anomalia a ser resolvida.


E, de fato, um grande esforço da farmacologia (como da psicologia, evidentemente) vem sendo feito no último século tanto no aprimoramento de substâncias que possam eliminar as dores constantes que sentimos no corpo, que são muitas, quanto no sentido de alcançar um estado onde o sofrimento não se coloque como tema de vida.


Hoje, grande parte dessas pequenas e insistentes dores, com as quais sempre o Homem conviveu (dentes, cabeça, coluna, abdômen) é eliminada pelo uso corriqueiro e cotidiano de uma gama incontável de analgésicos.


Mas também há um imenso esforço em solucionar as dores da alma: angústias, tristezas, pânicos, ansiedades. Neste último caso, para além da psicanálise, substâncias químicas eficientes vem sendo utilizadas para anestesiar esses sofrimentos da consciência e tornar as pessoas capazes de conduzir seu cotidiano sentindo-se razoavelmente livres de perturbações psicológicas.


Existem fármacos que tem efeito não apenas sobre dores corporais mas também existenciais, simultaneamente. E, ao contrário de certas substâncias, muitas delas conhecidas desde tempos antigos, que minimizam dores e sofrimentos, mas causam perturbações diversas na condução da vida consciente, esses fármacos permitem uma vida normal e produtiva.


Devemos apontar que o mundo contemporâneo engendrou ainda um imenso tráfico internacional de drogas, cujo objetivo é o mesmo: anestesiar consciências e corpos. Mas parece correta a impressão de que as drogas legais e receitadas pelos médicos tendem a ir ocupando grande parte desse espaço comercialmente selvagem.


Evidentemente que estados alterados e sensações extraordinárias continuarão a ser buscadas em um espaço ilegal de vícios em substâncias artesanalmente produzidas, que tornam o tradicional uso do álcool nessa direção apenas mais uma das alternativas. Mas, em tudo, uma complexa rede de anestesias vai predominando. Porque as drogas que causam alucinações ou euforias são também anestésicas de inquietudes.


Além do mais, os anestésicos não apenas revolucionaram as cirurgias e outros tratamentos invasivos, como também a experiência dos momentos terminais da existência, outrora eventualmente dolorosos e parcamente administráveis pelas drogas conhecidas em tempos antigos.


As implicações espirituais de todo esse movimento são evidentes: a experiência da dor e do sofrimento não deixou de ser central na existência, mas o seu papel como elemento fundamental na meditação passou a sofrer um forte ataque. Uma vez uma psicologa apontou-me uma imagem barroca de Jesus Cristo morto, coberto de feridas e me perguntou: “como é possível estruturar uma religião a partir disto?”. Para evitar polêmica nada respondi, mas pensei que apesar de anestesiados, ainda é a partir dessas dores e dessas angústias que nos movemos. Inclusive o mercado de soluções químicas para elas.


A anestesia tem, no entanto, o poder de diluir, ou minimizar, na consciência, a percepção dramática da natureza da existência humana neste mundo. Estabelece uma barreira, mais ou menos eficaz, mais na química do que na psicanálise, entre a consciência e a realidade do mundo. Funda uma forma de divórcio entre o corpo e a alma, como anotou bem Illich.


Segundo ele,


“com os crescentes níveis de insensibilidade provocada à dor, se reduziu igualmente a capacidade para experimentar as alegrias e os prazeres simples da vida. Se necessitam estímulos cada vez mais enérgicos para proporcionar às pessoas de uma sociedade anestésica alguma sensação de estar viva”.


Não sentimos dores, mas passamos a não sentir também uma série de outras sensações que estão ligadas à conexão da alma com o mundo através do corpo.


Uma outra consequência disso é a de que, em tal sociedade, a experiencia do sofrimento e da dor tornou-se crescentemente inaceitável. Esse movimento converge para as crenças iluministas de construção de uma sociedade sem sofrimentos e esforços, realçando os projetos utópicos também numa perspectiva química e viciante. E talvez não por acaso se busque a legalização de todos os anestésicos e a ampliação do acesso de todos a eles.


Mas tal “sociedade anestésica” realmente elimina o sofrimento? Essa questão é a que se coloca quanto mais e mais anestésicos se desenvolvem e são colocados em uso exatamente para ir ampliando o grau de divórcio da consciência com a realidade transitória do mundo. E a ânsia de sensibilidades cada vez maiores reflete essa separação que possui evidentes e crescentes efeitos colaterais sobre a sensibilidade humana ao mundo e ao próximo.


A dor pode não ser sentida. Mas ela está lá ainda. Está entranhada na própria condição do ser vivente e de uma alma que experimenta continuamente o caráter evanescente do mundo.


A meditação espiritual no mundo contemporâneo pode, segundo muitos, entender como objetivo maior da alma a defesa de um mundo sem dor. Mas será que o correto não deveria ser passar por sobre a ilusão da anestesia e reencontrar o sentido mais profundo da meditação na experiência da verdade?


Porque a anestesia cala, para nossa consciência, a essência que nos define e inibe, num estado comatoso, nosso desejo de ser. Numa cirurgia é uma grande coisa. Mas no cotidiano pode ser o fundamento de um inferno, no qual a alma sofre, mas finge, para si mesma, que não. Não há experiência da perda, nem percepção do amor.

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