Edgard Leite Ferreira Neto
Hieronymus Bosch (1450-1528) viveu no limiar do mundo em que vivemos. Era um artista sensível às grandes batalhas do espírito. No seu tempo, havia a percepção de que o mal estava entrando de forma incontrolável no mundo. Coisas estranhas estavam acontecendo. E, de fato, não apenas na Europa, mas em todos os lugares, desagregavam-se as estruturas conhecidas e o que se tinha como bem sofria assédio contínuo e persistente.
Esse processo, olhando o mundo em que vivemos, não apenas continua, como também, ao que tudo indica, se agravou. O Pe. Malagrida, em meados do século XVIII, teve várias visões proféticas, e viu o nosso século, o XXI, como um século onde todos os sistemas religiosos seriam entendidos como verdadeiros. Se afirmações antagônicas entre si são tidas como verdadeiras não há mais como distinguir a verdade. Ora, o fim da verdade é o império absoluto da mentira.
Que a tragédia de nosso tempo é infinitamente superior a de qualquer outra tragédia em tempos pretéritos é evidente. Por milênios, por exemplo, só se escreveu em pedra, papiro e pergaminho. Na época de Bosch já existia a imprensa e o seu incrível poder de espalhar o bem e o mal já estava em ação. O que dizer de toda essa rede de comunicação interativa na qual estamos imersos hoje? A amplitude dos meios amplia exponencialmente o trágico.
Da mesma forma, sempre se usaram lanças, arcos e flechas. É claro que se tornaram, com o tempo, instrumentos mais precisos e sofisticados, Mas sempre foram, basicamente, lanças, arcos e flechas. A aceleração vertiginosa da tecnologia das armas já era perceptível na época de Bosch, onde a pólvora dominava. Depois da Segunda Guerra Mundial tudo se tornou possível em termos de destruição. Numa amplitude que superou toda a capacidade bélica existente até o século XIX.
Assim, Bosch retratou, nos seus quadros, a angústia dos extremos do nosso tempo. Muitos, de forma leviana, o entendem como precursor do surrealismo. Porque consideram que a experiência metafórica do sagrado pode ser, em termos de arte contemporânea, entendida a partir do surrealismo do século XX. Na verdade, embora temas religiosos não sejam incomuns em, por exemplo, Salvador Dali (1904-1989), não há certeza de que o surrealismo aponta para Deus, ou se busca refletir sobre a religião ou a mística. Talvez apenas sinalize um entendimento secular dos sonhos humanos, tal como Freud e outros os entenderam.
Bosch retratou uma sociedade de massas em surgimento que, ao mover-se de forma aleatória, se defronta com o maravilhoso do mundo espiritual. Em tal sociedade as consciências humanas se fragmentam no mundo e no inferno, sem considerar a beleza do paraíso. Trata-se de um mundo predominantemente secular e obtuso, indiferente à eternidade.
Carl Linfert anotou como, em Bosch, a multidão, tema constante de seus quadros, parece desprovida da capacidade de julgamento, e como ela assume dimensões monstruosas diante daquilo que é correto. Quem é a multidão em Bosch? Parece, usualmente, que é essa multidão interna de demônios que nos habita e que nos movimenta de um lado para outro, quando estamos a ela submetidos, com a nossa consciência exposta às dores do mundo. "Qual é o teu nome?”, perguntou o Nazareno "E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos”(Mc 5:9).
Se a devastação que se reúne às margens da nossa consciência é realmente demoníaca, e tudo parece indicar que sim, e é expressão de um mundo descontrolado, o que também é verdadeiro, em Bosch tal destruição é bem explicitada pela deformação física que acompanha a presença do mal. Os demônios tornam os humanos caricaturas. Primeiro porque os homens os copiam. E os demônios não são humanos. Segundo, porque a alma possuída renuncia àquele sopro do belo, da grandeza da eternidade, da maravilha de decisão.
Assim, no seu Ecce Homo, a beleza da eternidade e do infinito aparece deformada, imersa na multidão tomada pela ignorância, pela tentativa insana de transformar aquilo que é espírito em pura matéria, ou em sangue e chagas. Pode o espírito ser reduzido a isso que é o mundo?
Para Bosch apenas aqueles que sabem olhar, com a alma iluminada pelo belo, a pureza essencial, podem distinguir, imerso no descontrole humano, o agente da salvação. Conseguem perceber a beleza eterna no horror da transitoriedade do mundo. E estes, eu, você, o pintor, também somos multidão.
Fantástica reflexão, atemporal mas, muito particularmente para os f de ias de hoje.