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No que acreditamos?


Edgard Leite Ferreira Neto


Santo Afonso Maria de Ligório {1696-1787) publicou um livro, em 1750, chamado Glórias de Maria. O texto foi, e ainda é, um grande sucesso editorial. É uma defesa das tradições marianas dentro da Igreja, contra todos aqueles que criticavam, de uma forma ou de outra, dentro e fora da Instituição, a veneração de Maria.


As polêmicas religiosas falam muito das pretensões humanas. O sábio fariseu Gamaliel (século I) era membro do Sinédrio, em Jerusalém, quando os apóstolos de Jesus foram trazidos para julgamento. Sua observação sobre o assunto disse tudo sobre as discussões que se tem, no mundo, sobre as coisas do espírito:


"E agora digo-vos: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará. Mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus”(At 5: 38-39).


Esse conselho, profundamente sensato, fala muito sobre a cautela necessária diante de questões que estão além da nossa capacidade de controle. O temor a Deus deve nortear as ações humanas, porque atuar contra Deus, contra o movimento essencial do mundo, se paga com vida. Na medida em que Ele é a fonte da vida. Ter prudência diante das coisas que ocorrem nesse assunto é importante pra discernir qual a melhor atitude a ser tomada diante das grandes discussões que ocorrem no âmbito dos destinos da vida espiritual.


Em certas questões de natureza religiosa, muitos tendem a colocar seus próprios sentimentos e convicções à frente de qualquer juízo cauteloso, acreditando que prudência implica em fortalecer o contendor. Como se fosse necessário ganhar aqui algo que está ganho num outro mundo. Raramente se dão conta, também, que a realidade das coisas precede a nossa existência. E perdem de vista o Eclesiastes: "há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós" (Ec 1:10). Nenhuma questão, nesse assunto, é realmente nova.


Assim, Santo Afonso de Ligório defende a argumentação mariana não a partir de sua convicção, pois esta pode estar certa ou errada, mas a partir de inumeráveis testemunhos, já que Maria apareceu a muitos ao longo da história. Santo Ligório enumerou relatos de pessoas de diferentes origens e destinos. Podiam ser santos ou prostitutas. Todos os relatos convergem para confirmar a compaixão, a misericórdia, a doçura, a piedade e a clemência da mãe de Jesus. Para São Ligório, também o testemunho de demônios, exorcizados e eventualmente questionados sobre o tema, era válido. Um deles, perguntado sobre quem era Maria, respondeu: "é aquela que sobe e desce", isto é, liga o mundo dos homens ao de Deus.


A experiência do invisível, ou daquilo que as pessoas veem ou sentem com o olhar da imaginação, é, portanto, testemunho da verdade. Mas isso porque Santo Ligório entendia esse universo de testemunhos em associação com toda um antiga produção intelectual de documentos dogmáticos, oficiais de Igreja, de diferentes intelectuais de autoridade, realizada por pensadores diversos ao longo dos séculos e também relacionado a interpretações inspiradas e convergentes da literatura bíblica sobre Maria. Esses elementos, interligados, constituem a tradição, que continuaria se desenvolvendo e se reafirmando, na experiência imaginativa e na experiência intelectual.


O que imaginamos e o que sentimos, e é reforçado intelectualmente, é base daquilo em que cremos. Por isso quando se ataca a tradição, pode-se faze-lo de duas formas: criticando a produção intelectual, filosófica e teológica, ou se atacando aquilo que vemos e sentimos com o coração, em sonho ou vigília. Destruindo-se um deles, ou ambos, tenta-se interromper a comunhão entre imaginação e intelecto no sentido da crença.


Que isso causa confusão, não há dúvida. Basta ver o caos que existe entre imaginação e razão no nosso tempo. Mas isso interrompe a percepção da eternidade contida na alma ou desqualifica a razão que sobe a Deus? Nada indica que isso ocorra. Porque o profundo busca o ser sempre, e o homem tenta o tempo todo alcançar o Supremo Bem. Defender a tradição é defender não só nossa crença, faz-nos entender Santo Afonso de Ligório, mas também a nossa sensibilidade para o invisível, que constrói a grandeza da nossa condição humana. Nossa integridade e sentido.


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